


Os biscoitos caseiros levam os cabedais
Os ingredientes da roça e a reprodução das receitas de família, na visão das quitandeiras, são elementos que conferem autenticidade às suas quitandas.
por Juliana Bonomo
Desde os primórdios do povoamento de Minas Gerais, nos últimos anos do século XVII, uma variedade de elementos da pastelaria caseira, denominadas “quitandas”, esteve presente na alimentação diária dos habitantes da região mineradora. No século XXI, o hábito do consumo de quitandas permanece, permeado por tradições do “saber fazer” e do servir a pastelaria caseira típica mineira: bolos, broas, biscoitos, sequilhos, roscas, rosquinhas, pães de queijo, quebra-quebra etc. As mulheres que fazem e vendem quitandas artesanalmente são conhecidas como quitandeiras. A produção e a comercialização de quitandas é um ofício tipicamente feminino e praticado em cidades de pequeno e médio porte de Minas Gerais.
Entre os anos de 2012 e 2020 empreendi uma longa pesquisa sobre o ofício das quitandeiras de Minas Gerais, o que resultou na minha dissertação de mestrado, na minha tese de doutorado e em um pedido de registro do ofício como patrimônio cultural imaterial junto ao Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o IPHAN. O pedido de registro para o ofício ancora-se na importância histórica e simbólica das práticas que envolvem a produção e o consumo de quitandas, ou seja, em uma tradição importante de Minas Gerais.
Para que conheçam um pouquinho dessa história, tenho o prazer de compartilhar com os leitores do Sobremesah, um texto adaptado da minha tese de doutorado, intitulada: “Com gosto e por gosto”: o ofício das quitandeiras de Minas Gerais sob uma perspectiva histórica”, cujo conteúdo completo encontra-se disponível na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP. Aqui, busquei reconstruir a história do consumo e da produção de quitandas, observando suas transformações e permanências. Para tanto, contei com o depoimento de 23 quitandeiras, entrevistadas nos anos de 2013 e 2018, nas seguintes cidades de Minas Gerais: Congonhas, Entre Rios de Minas, Jeceaba, Itaverava, Ouro Preto, São Brás do Suaçuí e Belo Horizonte – com exceção da capital, as demais cidades têm em comum o passado relacionado à mineração e à produção agropecuária. Em termos espaciais, a pesquisa tem um escopo reduzido e não pretendo generalizar as informações obtidas na pesquisa de campo para todo o estado.
A partir da fala da quitandeira D. Odete Silva: “os biscoitos caseiros levam os cabedais”, convido você a embarcar comigo em uma viagem ao passado, que se inicia na década de 1930, período até o qual as memórias das minhas entrevistadas puderam alcançar. Essa história é contada pelas próprias quitandeiras e reconstrói um repertório histórico de tradições que, até então, pertencia somente ao campo da oralidade e agora passa a integrar um registro escrito de trajetórias de práticas, pessoas e objetos que se encontravam excluídas da História Oficial.

Produção e consumo de quitandas em Minas Gerais após 1930
Nos séculos XVIII e XIX, a comercialização de quitandas esteve diretamente relacionada aos excedentes da economia de autoconsumo e ao aproveitamento de alimentos cultivados pela população da região mineradora em seus quintais. Ao longo dos séculos XX e XXI, o consumo de quitandas permaneceu, mesmo com o surgimento do pão e dos biscoitos industrializados. Através das memórias das minhas entrevistadas, foi possível apreender os costumes alimentares dos moradores das cidades pesquisadas a partir de 1930, década até onde a memória das depoentes puderam alcançar.
Nos relatos que englobam o período entre as décadas de 1930 e de 1960, impressiona a frequência na qual é citada a relação entre a produção das quitandas em grandes quantidades com o grande número de filhos das famílias. Segundo a quitandeira Odete Silva, na década de 1930, a sua mãe preparava quitandas em grandes quantidades, apenas “para a casa”, para alimentar os filhos, que eram muitos. Do mesmo modo, na década de 1940, a quitandeira Maria das Graças Dias, conhecida como “Gracinha”, contou-me que sua mãe também fazia quitandas “só para o gasto”, para alimentar a família numerosa.
Nas primeiras décadas do século XX, os biscoitos industrializados já eram comercializados em Minas Gerais. Em 1930, a fábrica de biscoitos Aymoré instalou-se em Belo Horizonte. A marca Aymoré nasceu na fábrica “Moinho Inglez”, a qual pretendia instalar o hábito no brasileiro de consumir produtos derivados do trigo, como biscoitos e pães. Nos anúncios das revistas belo-horizontinas, tentava-se convencer os consumidores de que os biscoitos eram nutritivos e deveriam complementar todas as refeições, além de ofertarem um “paladar fino”.
Nas cidades pesquisadas, não pude precisar quando os biscoitos industrializados passaram a integrar a alimentação da população. Interessa-nos mostrar, aqui, que o biscoito industrializado surgiu como algo refinado e sofisticado, em contraposição à quitanda, rústica e artesanal. Ainda assim, os biscoitos industrializados não foram capazes de desbancar o lugar das quitandas na alimentação dos habitantes das cidades contempladas na nossa pesquisa. O pão, por sua vez, até meados do século XX, era um alimento raro e caro, cujo preço era pouco acessível à maioria da população dessa região de Minas Gerais.
Em Congonhas, antes da abertura da primeira padaria da cidade, o pão vinha de outros locais. Por ser um alimento caro, quando havia pão na mesa das famílias, era um “motivo de festa”, como relatou a professora Kátia Souza:
Há uns 60 anos atrás, na minha família, tinha-se o hábito
de fazer muita quitanda, porque não tinha padaria aqui em Congonhas.
Algumas vendas tinham pães, eles vinham
de fora de daqui, mas eram muito caros. Quando a gente
via um pão de sal, a gente ficava louco,
era diferente para a gente.
O pão de sal era chic. Depois surgiu uma padaria aqui em Congonhas.
Aí meu pai comprava, depois da missa,
um pão doce maior. Aí, o que acontecia
quando o meu pai trazia esse pão? Era uma festa!
Era uma fatia só para cada um, mas aquilo era uma farra!
E, às vezes, ele trazia uns pãezinhos de sal.
(Kátia Souza, 2018)
Segundo o padeiro e quitandeiro Leopoldo Cordeiro, conhecido como “Leo”, antes do seu pai abrir a primeira padaria de Congonhas, em 1952, a população não tinha o costume de comer pães. Até então, as famílias consumiam somente quitandas. O hábito de consumir pães foi sendo introduzido aos poucos entre os moradores da cidade:
A padaria Santo Afonso foi fundada em 1952 pelo meu pai e pelo meu tio aqui em Congonhas.
Eles começaram mesmo fazendo pão e outras receitas caseiras da minha avó.
As famílias, em geral, só se alimentavam de quitandas, não existia pão de sal.
Eles faziam uma fornada de 200, 100 pães e sobrava. Aí eles
colocavam no balaio e saíam vendendo a pé, oferecendo os pães
de casa em casa. Aí o negócio foi se firmando, as pessoas
passaram a consumir mais pães e eles montaram um ponto mais
para o centro da cidade.
(Leopoldo Cordeiro, 2018)

Apesar de ter sido fundada em 1952, somente em 1958 a padaria teve o seu primeiro forno elétrico, pois, até então, era utilizado um forno de tijolos e barro. O forno elétrico da padaria foi inaugurado juntamente com a energia elétrica em Congonhas. O vice-governador de Minas Gerais, presente na cidade para a ocasião, chegou a participar da inauguração do forno. Na época, a aquisição do forno foi considerada uma “loucura” pelos moradores, pois eles achavam que o investimento era alto e que, mais tarde, o padeiro iria à falência – o que não aconteceu.
Em torno das décadas de 1960 e 1970, as quitandas caseiras ainda constituíam parte importante da alimentação das famílias, principalmente, entre aquelas com um grande número de filhos e habitantes da zona rural.
As minhas avós faziam muitos tipos de biscoitos. A minha mãe e as
minhas tias também faziam muito, só para o consumo de casa.
A minha mãe fazia porque ela tinha muitos filhos, nós éramos 14.
Ela fazia uns balaios de diversas qualidades de biscoito. Ela fazia
uma vez a cada oito dias, quinze dias.
(Leila Ribeiro, 2018)
Quando a gente morava na roça com a minha avó, ela fazia
quitandas em grandes quantidades só para consumo da família,
porque era muita gente dentro de casa. E na roça tem também os
vizinhos. Sempre chega mais um e junta aquele monte de gente
pra comer.
(Raquel Ramalho, 2013)
O pão ainda era raro e não constituía a base da alimentação dos mineiros das regiões menos urbanizadas. Suleni Alves, criada na zona rural, na década de 1960, repete a mesma descrição da professora Kátia para os momentos em que havia pão em casa: “uma festa”! A mesa repleta de quitandas também tinha seus momentos lúdicos na família de Suleni. A diversão ficava por conta de sua mãe, Dona Diva, que fazia festas de aniversário para as bonecas e mini bolos de vários formatos, usando latas vazias de marmelada, massa de tomate etc.
A minha mãe sempre fez quitanda para a gente, nós fomos
criadas comendo quitandas. Quando a gente morava na fazenda,
eu e as minhas irmãs fazíamos festa de aniversário para a boneca.
Aí a minha mãe fazia bolo confeitado, cobria o bolo com aqueles
enfeites todos… A gente sentava e fazia a festa! A gente quase
não comia pão. Quando tinha pão lá em casa, era outra festa que
a gente fazia. Como não tinha pão, a minha mãe sempre fazia
bolo, biscoito, pão de queijo. E ela tinha mania de guardar umas
latinhas. Ela fazia bolo para a gente nessas latinhas
pequenininhas, em vários formatos. Então, tinha bolinho da
latinha de marmelada, bolinho da lata de massa de tomate,
bolinho de tudo quanto é formato.
(Suleni Alves, 2018)
As quitandas, por serem um alimento com um prazo de validade elevado, eram preparadas para a semana toda. Normalmente, as famílias dedicavam um dia inteiro para fazer as quitandas e consumi-las ao longo da semana. Na família da quitandeira Gracinha, por exemplo, sábado era o dia de fazer quitandas. Depois de preparadas, eram guardadas em latas de alumínio e consumidas ao longo da semana. A lata, além de ser uma embalagem para as quitandas, era o recipiente ideal para estoca-las. As quitandas mantidas nas latas bem fechadas podiam durar muito tempo. Segundo Abdala (2007), esse hábito veio do início do século XIX, quando a vida concentrada nas fazendas e as longas distâncias impunham a necessidade da estocagem de alimentos. Dessa forma, era possível servir o que havia de melhor a quem vinha de longe. Daí a importância dos doces em compota de açúcar, as carnes conservadas na banha e as quitandas mantidas em recipientes bem fechados.
Além da embalagem que ajudava na conservação das quitandas, havia uma ordem para o seu consumo: das menos duráveis para as mais duráveis. Na família da professora Kátia, em cada lata, colocava-se um tipo de quitanda, que ela chama de “merenda”. As broas, mais úmidas e, por isso, com menor durabilidade, eram consumidas primeiro. Depois consumiam-se os pães doces e recheados e, finalmente, as quitandas mais secas: as rosquinhas e os biscoitos de limão. Como eram nove filhos na sua família, a avó e a mãe faziam muitas quitandas “porque tinha que ter comida para essa meninada toda”.
Na minha família, a quitanda era produzida para a semana inteira. A
gente ia comendo ao longo da semana. Tinha uma ordem para
comer. Em cada lata, colocava-se um tipo de merenda. As broas,
como eram feitas com coalhada, perdiam mais rápido, porque eram
mais úmidas. Então, depois da broa, tinha que consumir o pão doce
para não estragar, não mofar. Depois vinham os biscoitinhos de
nata, as rosquinhas de sal amoníaco e os biscoitinhos de limão. Lá
em casa, nós erámos nove filhos, tinha que ter comida para essa
meninada toda. Nós fazíamos as quitandas para ter em casa e para
servir quando chegasse visita.
(Kátia Souza, 2018)
O consumo das quitandas em família, entre amigos, assim como a sua preparação, levava à reunião das pessoas na cozinha, demonstrando o quão representativo é esse alimento na sociabilidade dos mineiros. Nas memórias das minhas interlocutoras, é recorrente a questão da coletividade e do sentimento de pertencimento nesses momentos compartilhados com parentes e amigos. Com isso, observamos que, nessas reminiscências, fica sempre a lembrança de figuras exemplares, de avós ou parentes lendários que constituem a natureza íntima da família. As memórias das reuniões familiares passadas na década de 1960, relatadas pela nossa interlocutora Kátia, ilustram esse hábito antigo da população local, o qual perdura até os dias de hoje na maioria das casas das pequenas cidades de Minas Gerais: a reunião na cozinha, com “contação de causos” e muita “comilança”.
A gente ia na casa da minha avó todo final de semana. Nos dias
frios, o pessoal sentava naqueles bancos de madeira sem encosto.
No meio da cozinha, enchiam uma lata de alumínio com brasa para
aquecer o ambiente. E o pessoal ficava lá contando caso, tomando
café e comendo quitandas. Quitandas de vários tipos: o cubu assado
no forno de barro, a broinha de milho, aquela broinha de milho
socadinha, broa de fubá com coalhada. A gente gostava porque
tinha comilança. A gente também gostava de escutar as histórias.
Nós crescemos escutando histórias.
(Kátia Souza, 2018)
Na casa da Kátia, tal como o hábito de muitas casas da região pesquisada, as quitandas acompanhavam o café da manhã, o café da tarde e a última refeição do dia: o café da noite. Mesmo estando presentes no dia a dia das famílias, as quitandas mexiam com o imaginário de crianças e adultos, principalmente quando eram guardadas em um armário, trancadas à chave.
Lá em casa, as quitandas eram feitas no forno a lenha. Tanto a
minha avó materna, quanto a minha avó paterna tinham fogão a
lenha em casa. Quase não se via fogão a gás. Na copa da casa da
minha avó, tinha um armário enorme de madeira, com uma
gaveta imensa, que a gente não tinha força para puxar, porque
era madeira maciça. Ele tinha duas portas enormes. Quando você
abria essas portas, que a gente não abria, tinha as prateleiras,
onde ela colocava as latas de biscoito e os doces. Só tirava na hora
do café da manhã, da tarde e da noite. Era assim: a gente tomava
café de manhã, almoçava, tomava um café à tarde, jantava e, à
noite, antes de dormir, a gente tomava outro café. Quando a
minha avó abria aquela porta ali era mágico! Coisa de vó é
diferente! Nas prateleiras de madeira tinha os paninhos
branquinhos, bordados à mão, com as latas de quitandas… Ai… a
gente ficava doido!
(Kátia Souza, 2018)
O relato acima demonstra o quanto a memória do consumo das quitandas é cercada por um cenário repleto de “monumentos”: o ambiente da cozinha, o fogão a lenha, os bancos de madeira e o armário de madeira com latas cheias de quitandas. Todos esses objetos estão imbuídos de uma força simbólica, definidos por Chauí (2000) como objetos “semióforos”. Até, pelo menos, a década de 1980, o cenário da cozinha descrito por Kátia, com fogões a lenha e grandes armários de madeira para guardar mantimentos, era comumente encontrado nas pequenas cidades do estado de Minas Gerais.
Vale lembrar que os fogões a gás começaram a ser comercializados nas grandes capitais já nas primeiras décadas do século XX. No entanto, nas cidades menos urbanizadas de Minas Gerais, ainda em meados do século XX, a maior parte das famílias assavam as quitandas em fornos a lenha ou fornos de barro ou de cupim. Nas cidades pesquisadas, segundo o Censo Demográfico do IBGE, em 1960, a maior parte dos domicílios ainda não tinha fogão a gás, nem geladeira. Diferentemente, na capital Belo Horizonte, o número de domicílios com fogão a gás superava o número de domicílios com fogão a lenha.
Na década de 1970, com exceção de Belo Horizonte e Congonhas, o número de domicílios com fogões a gás teve um crescimento pouco significativo. É importante considerar que, segundo o Censo Demográfico de 1970, com exceção daquelas duas cidades, as populações rurais de Entre Rios de Minas, São Brás do Suaçuí, Jeceaba e Itaverava representavam uma parcela significativa de suas populações totais, o que ajuda a explicar a baixa aquisição de fogões a gás. A geladeira, por sua vez, foi outro item introduzindo lentamente nas casas das cidades pesquisadas. Essa tendência manteve-se até 1980.
Portanto, a velocidade em que as inovações tecnológicas tomaram conta da capital mineira foi mais acelerada do que nas cidades pesquisadas. As propagandas das revistas voltadas ao público belo-horizontino, do século passado, ilustram essa diferença. Trata-se, então, de duas dinâmicas diferentes: a capital, que já nasceu tendo acesso aos bens de consumo duráveis e o interior, que adquiria e se adaptava aos novos equipamentos a passos lentos. É possível que, durante um tempo, os fogões a lenha e os fogões a gás tenham coexistido nos domicílios devido a uma resistência inicial das donas de casa em manusear um fogão com uma nova tecnologia. Sendo assim, devido à lenta aquisição de bens duráveis pelas cozinhas das cidades pesquisadas, a adoção de novas formas de assar as quitandas, ou seja, em fornos elétricos ou a gás, aconteceu de forma gradual entre 1960 e 1980.
Rosquinhas Pão de queijo mineiro
De forma geral, à medida em que o fogão a gás e a geladeira começaram a fazer parte das cozinhas, reformulou-se a maneira de cozinhar e de consumir os alimentos. O fogão a gás, além de modificar significativamente o ambiente da cozinha, reduziu o tempo gasto no ato de cozinhar. Reduziu-se o tempo para obter a chama, dispensando a compra, o armazenamento e a queima da lenha. A geladeira elétrica substituiu os armários de madeira, alterando profundamente a conservação dos alimentos, dispensando a necessidade de conservar as carnes na gordura e as frutas nas conservas de açúcar.
Essas inovações transformaram as formas de cozinhar, como também interferiram diretamente no sabor dos alimentos. As carnes conservadas na gordura não têm o mesmo sabor e a mesma textura das carnes conservadas sem gordura, na geladeira. As quitandas assadas no forno a gás não têm o sabor defumado das quitandas assadas no forno a lenha ou nas brasas dos fornos de barro ou de cupim. Esses sabores, por sua vez, sempre fizeram parte dos hábitos alimentares dos habitantes da região pesquisada.
E hábitos antigos demoram a mudar. Talvez por isso, ainda na segunda década do século XXI, muitas casas do interior de Minas Gerais conservem fogões e fornos a lenha. Como apontado por Fernand Braudel (2009), as mudanças nos hábitos alimentares operam de uma maneira muito lenta e quase que imperceptivelmente, podendo ser captadas apenas na duração do tempo longo. Na atualidade, embora o forno a lenha ou de barro seja preferido pelas quitandeiras, devido ao sabor que conferem ao produto final, o forno elétrico ou a gás são muito utilizados, principalmente quando se assa uma grande quantidade de quitandas. A partir das quatro últimas décadas do século passado, as cozinhas das casas da região pesquisada em Minas Gerais também incorporaram novos instrumentos, como as batedeiras, os liquidificadores e os processadores. No século XXI, contudo, eles são pouco utilizados pela produção doméstica e artesanal de quitandas. Segundo as nossas entrevistadas, os eletrodomésticos não proporcionam um resultado melhor do que o trabalho manual.
No século atual, observamos a preferência pela utilização de ingredientes artesanais e pelos fornos a lenha ou de barro, assim como manutenção da produção manual das quitandas, mesmo quando produzidas em grande quantidade. Eventualmente, utilizam-se equipamentos caseiros como liquidificadores e batedeiras. O maquinário utilizado nas padarias, por sua vez, não faz parte dos instrumentos de trabalho desse grupo de quitandeiras. A quitandeira “Gracinha” chegou a considerar a aquisição de uma amassadeira profissional para fazer roscas da rainha. Como a máquina não atingia o ponto de véu, ela decidiu continuar a trabalhar a massa manualmente, destacando que faz o mesmo movimento 300 vezes para apenas uma receita de rosca.
Para você fazer 100 roscas, você tem que estar com os braços muito
bons. Sabe quantas vezes eu faço esse movimento aqui com as mãos
(mostra o movimento com os punhos) em uma receita de rosca? 300
vezes cada receita! Eu pensei em comprar aquela amassadeira, até
que um dia eu entrei em contato com o vendedor e perguntei se ela
atingia o ponto de véu. Ele disse que não. Então eu falei: o ponto de
véu é aqui nos meus braços mesmo.
(Maria das Graças Dias, 2018)
A quitandeira Leila destaca a importância do contato manual com a massa e diz não ter a mesma “mentalidade da produção na padaria”: em grande quantidade e mecanizada. Para ela, uma boa quitanda é feita de forma artesanal, manualmente, com gordura de porco e manteiga da roça.
Quitanteira Leila Ribeiro Quitandas da Leila
Tudo que eu faço é manual. A única batedeira que eu tenho é essa:
caseira. Quanto aos ingredientes, eu só compro a farinha, o polvilho
e os ovos, eu compro de um padeiro. As outras coisas eu compro no
comércio. Eu uso gordura de porco e manteiga da roça. Eu não
tenho aquela mentalidade da padaria de fazer em grande
quantidade. Jogar a massa na batedeira e largar. Eu que gosto de
amassar.
(Leila Ribeiro, 2018)
Assim, quando a intenção é obter uma quitanda artesanal, mesmo os estabelecimentos comerciais, que trabalham em uma escala maior, dispensam o uso de certos maquinários. A proprietária do estabelecimento D. Diva Café e Quitandas, Suleni Alves, alega que, mesmo produzindo uma grande quantidade de pão de queijo, não é possível utilizar máquina boleadora, pois a massa é muito mole. Os pães de queijo são enrolados à mão, um a um.
O nosso pão de queijo não pode ser boleado. Não tem boleadora
que consiga bolear, porque a nossa massa é mais molinha. Ele é
pesado um a um e enrolado todo na mão. O que a gente tem de
equipamento é um forno a gás, aquele Dacco grande, uma
batedeira pequena, essas de casa, Arno planetária. Só a masseira,
que faz a massa do pão de queijo é que é uma máquina mesmo.
(Suleni Alves, 2018)
Desse modo, os depoimentos sugerem que, quando se trata da produção artesanal de quitandas, dificilmente as batedeiras, amassadeiras etc. atingem um resultado melhor do que o trabalho manual. Ademais, sabemos que exercer um trabalho manual é importante para essas trabalhadoras, pois é algo que sentem prazer em fazer e, talvez por isso, seja tão difícil substituí-lo. A habilidade das quitandeiras vem de um treinamento prático e cotidiano. O maquinário, quando impede a repetição, a “mão na massa”, mão e pensamento são separados, resultando em um distanciamento pessoal do produto final.
Além disso, a quitanda feita manualmente traz consigo uma marca pessoal da quitandeira. Essa marca pode estar presente na textura da quitanda, na forma de enrolar roscas e rosquinhas, na regularidade do tamanho ou em formatos diferenciados de biscoitos, sequilhos etc. O produto final, então, contém o que Richard Sennett (2009, p. 134) chamou da “presença do artesão”: uma marca particular daquele que o produziu, enfatizando a palavra “eu”. Essa marca atesta a diferença entre a quitanda artesanal e as quitandas da padaria.
Além da importância do trabalho manual na produção artesanal de quitandas, há uma preferência pelas receitas antigas de família, pelos ingredientes da roça e pelos fornos à lenha ou de barro. Segundo as minhas entrevistadas, tudo isso confere um sabor melhor à quitanda. A quitandeira Maria do Carmo, ao comparar as quitandas artesanais com os biscoitos feitos na padaria ou industrializados, diz que a escolha dos ingredientes e a cocção no forno de barro fazem com que a quitanda artesanal seja mais saborosa.
A quitanda da gente, é tudo do produtor ao consumidor. O leite é
de vaca, não é de caixinha, os ovos a gente colhe, a banha de porco
é da roça, é tudo muito natural. Outra coisa, a quitanda da gente é
feita naquele trem doido que você está vendo ali [apontando para o
forno de barro no quintal de sua casa], que faz muita fumaça, mas o
gosto fica muito melhor.
(Maria do Carmo Costa, 2013)

Dessa forma, evidencia-se a importância da escolha dos ingredientes para a obtenção de uma quitanda de boa qualidade, ou seja, uma quitanda saborosa e com boa textura. Ao contrário das padarias, muitas quitandeiras continuam a usar a banha de porco no lugar da margarina, a nata no lugar do creme de leite, os ovos caipiras no lugar dos ovos brancos e o leite da roça, mais gorduroso, que confere maior maciez às quitandas. Apesar da farinha de trigo ser amplamente utilizada nas quitandas, há uma predominância das farinhas derivadas da mandioca (principalmente o polvilho) e das farinhas derivadas do milho, as quais podem ser de vários tipos: fubá mimoso, fubá de canjica ou fubá moinho d’água. Este último, por ser feito artesanalmente, é mais grosso e tem um sabor mais forte, ocupando a preferência para a produção quitandas à base de milho, como as broas, as rosquinhas e os bolos.
Na concorrência com as padarias, as quitandeiras acreditam que a característica artesanal de suas quitandas motiva os seus clientes a comprá-las. Conforme a quitandeira Margarida Resende, os produtos de padaria têm muito conservante. Já os biscoitos feitos em casa, são feitos com fubá da roça e produtos vindos do quintal, portanto, não têm aditivos, têm mais qualidade e são mais saborosos. Para a quitandeira Odete Silva, os biscoitos da padaria são mais bonitos, mas não são tão saborosos quanto os caseiros e, em suas palavras, não levam os “cabedais”.
O biscoito caseiro é um biscoito mais forte, como se diz, leva os
cabedais! Mais ovos e manteiga caseira. Os de padaria são bonitos,
mas dizem assim: às vezes é mais a beleza do que a bondade. O da
padaria não é aquela fortidão. O sabor não é igual ao caseiro. Eles
colocam poucos ovos, usam anilina e a gente usa o ovo caipira e eles
usam esse ovo branco que eu tenho pavor dele!
(Odete Silva, 2013)
Em Belo Horizonte, entrevistei duas proprietárias de estabelecimentos comerciais especializados em quitandas. A Suleni Alves, uma das proprietárias do “Dona Diva Café e Quitandas”, já mencionada anteriormente, e a Mariana Souza, chef e proprietária do café e restaurante “Roça Grande”. As duas disseram seguir os mesmos princípios: a preferência pela quitanda artesanal, ingredientes não industrializados e receitas antigas de família.

Aqui, eu sirvo de quitanda: brevidade, que não tem tudo todo dia,
porque a gente trabalha com sazonalidade, disponibilidade da
cozinha, de produção. Mas eu trabalho também com broinha de
fubá de canjica, broa de fubá com queijo, o bolo de banana com
farinha integral, bolo de cenoura com chocolate, mas a gente não
faz aquela calda, a gente faz uma ganache com cachaça, biscoito de
polvilho frito, o pão de queijo e o pastel de angu. São todas receitas
minhas ou da minha família.
(Mariana Souza, 2018)
A chef faz questão de trabalhar com ingredientes da roça e de pequenos produtores da cidade de Moema.
Nós só trabalhamos com pequenos produtores, com agricultura
familiar. A grande maioria dos meus ingredientes vem de Moema.
A gente traz leite, ovo, queijo, manteiga, hortaliças, tudo o que a
gente encontra de pequenos produtores a gente traz.
(Mariana Souza, 2018)
Do mesmo modo, Suleni só serve quitandas artesanais no seu estabelecimento, cujos ingredientes são provenientes de pequenos produtores da região da Serra da Canastra. Todas as receitas são de sua mãe, D. Diva, e não levam conservantes ou qualquer outro tipo de aditivos químicos.
As nossas quitandas são todas artesanais, nós mesmas fazemos
todas. Nós temos um fornecedor de queijo, na Serra da Canastra,
vem direto do produtor para a gente. A mesma pessoa que me
fornece o queijo, é quem me fornece os ovos. A gente usa ovos
caipira nas quitandas. Os nossos produtos não têm gordura trans,
não têm aditivos químicos, não têm conservantes, não têm
essência artificial, pré mistura, nada disso. Quando nem se
preocupava com isso, a gente já fazia assim. Porque a gente faz as
quitandas como a minha mãe fazia.
(Suleni Alves, 2018)
Assim, os ingredientes da roça e a reprodução das receitas de família, na visão das quitandeiras, são elementos que conferem autenticidade às suas quitandas, na medida em que se aproximam do seu universo de aprendizado das receitas com suas mães e avós e com a história de seus antepassados, ajudando a remeter ao mesmo sabor de outrora. Esses fatores, combinados, fazem um elo com o passado, mantendo, nos dias de hoje, um hábito alimentar de outros tempos.
Isso nos mostra que, com a emergência do processo de industrialização dos alimentos, a quitanda caseira e artesanal não perdeu espaço. Ao contrário, o antigo hábito de consumir quitandas artesanais entre a população das cidades abordadas nesse estudo se mantém. Por um lado, trata-se de um hábito antigo e consolidado. Por outro, há um movimento recente de valorização do produto artesanal, do produto relacionado aos antepassados, vide o público crescente dos festivais gastronômicos dedicados à cozinha tradicional mineira. Se antes a demanda era somente local, formada pelos moradores das cidades, hoje, somam-se à essa demanda, os consumidores atentos aos efeitos na saúde dos alimentos industrializados e à importância simbólica desse alimento. A demanda pela quitanda artesanal, por sua vez, ajuda a valorizar a figura da quitandeira no cenário cultural de Minas Gerais e os seus “cabedais”, do qual fazem parte os saberes, os sabores, os elementos simbólicos e a tradição.
REFERÊNCIAS
ABDALA, Mônica Chaves. Receita de mineiridade: a cozinha e a construção da imagem do mineiro: 2ª Ed. Uberlândia: Edufu, 2007.
BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV-XVIII. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
CHAUÍ, Marilena. A nação como semióforo. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Perseu Abramo, 2000. p. 11 a 29.
MENEZES, Ulpiano Bezerra de. O campo do patrimônio cultural: uma revisão de premissas. 1º. Forum Nacional de Patrimônio Cultural, vol. 1, 2009, p. 25-39.
SENNETT, Richard. The Craftsman. New Haven & London: Yale University Press, 2009.
SENRA, Rosaly. Quitandas de Minas: receitas de família e histórias. Belo Horizonte: Gutenberg, 2008.
PARA NÃO PASSAR VONTADE!


Goiabinha (biscoito beliscão)
PARA ESTUDAR MAIS!

A felicidade do lar vem do fogão
