A felicidade do lar vem do fogão
A felicidade do lar vem do fogão

A felicidade do lar vem do fogão

Citando Schopenhauer, o professor lembrou que a felicidade da vida pública depende da felicidade da vida particular, e concluiu mencionando o pensamento da escritora Julia Lopes de Almeida: “A felicidade do lar vem do fogão”. por Lúcia Soares

por Lucia Soares

No começo do século XX, a riqueza do café impulsionava a transformação de São Paulo. O sentido de modernidade europeu moldava a estética da cidade e inspirava os hábitos da elite cafeeira que, aos poucos, fixava residência construindo palacetes nas avenidas que surgiam. Acontecimentos sociais como festas, casamentos e jantares de gala passaram a exigir luxo, elegância e etiqueta civilizada à mesa.

Estava abolida a escravidão e proclamada a república. O projeto político republicano defendera a instrução como plataforma para combater as desigualdades sociais, na primeira república. As ideias sobre o trabalho assalariado e as demandas da industrialização levaram o ensino profissional a ganhar espaço na capital. Desse modo, a Escola Profissional Feminina também passou a oferecer em seu currículo, aulas de Arte Culinária, a partir de 1911. A professora contratada para ministrar a disciplina foi a Sra. Maria Thereza de Abreu Costa, uma paulistana formada professora, reconhecida cozinheira que negociava com buffet na capital.

A iniciativa motivou a visita de personagens ilustres como o próprio presidente de Estado, Rodrigues Alves que lá esteve em 08 de junho de 1912. De acordo com a matéria publicada no jornal O Estado de São Paulo, na ocasião foi servido um “lunch” composto de diferentes iguarias preparado e servido pelas alunas, com direito a um brinde com Champagne ao final, e palavras de gratidão proferidas pelo professor de filosofia, Manoel Ciridião Buarque. Citando Schopenhauer, o professor lembrou que a felicidade da vida pública depende da felicidade da vida particular, e concluiu mencionando o pensamento da escritora Julia Lopes de Almeida: “A felicidade do lar vem do fogão”. Desse modo, a escola normal estava contribuindo para a felicidade da família e da sociedade. E o evento foi encerrado sob aplausos.

Naquele momento, um discurso sobre o fogão fazia muito sentido para São Paulo, ainda mais se ele fosse a gás, pois, a partir de 1912, a Light passava a deter o controle acionário da San Paulo Gas Company. Havia a necessidade urgente de se criar mercado para a venda do gás para fins domésticos, uma vez que os lampiões de gás (encarregados da iluminação pública) vinham sendo substituídos gradativamente por lâmpadas de energia elétrica, o que contribuía para aumentar o volume de gás excedente.

É oportuno lembrar também que, a partir de 1912, as propagandas de fogão a gás da Société Anonyme du Gaz (SAG) aparecem semanalmente nas edições da revista Fon-fon, periódico carioca de grande circulação no país, seguido por outras marcas e periódicos, tornando-se símbolo de modernidade no lar.

Tudo estava conectado com uma nova ideologia que surgira para reforçar novos padrões de comportamento. A educação da mulher para os novos tempos baseava-se nos princípios da modernidade nacional: sanear, remodelar e civilizar, associados à penetração do capitalismo industrial. Isto é, o sistema capitalista de produção, propaganda e consumo que se instalou em São Paulo, a partir de 1850, passou a promover uma dinâmica de transformação e de desconexão com o passado tradicional, tendo como eixo a racionalização dos processos.

A atualização do papel da mulher e a divulgação de novos conhecimentos teve na imprensa sua maior aliada. Em 1915, a própria Profa. Maria Thereza que já colaborava com crônicas para alguns periódicos paulistas, lançou seu primeiro livro de culinária: Noções de Arte Culinária que marcou a cozinha paulista com receitas sofisticadas de pratos e cardápios elaborados, sendo considerado um dos livros de culinária mais importantes do país.

O livro está dividido por assunto iniciando com as Hors-d’oeuvre (entradas), onde ensina a servir rabanetes, salame, azeitonas, anchovas, arenques, ostras, sardinhas, paté de foie gras e presunto com abacaxi, entre outros. Em seguida, vêm os Sandwiches e Canapés cujas receitas variam entre sanduíches frios, a base de manteiga ou maionese, ovos, frios, conservas, mostarda e molho apimentado, e pão de sanduíche preto ou branco, ou os dois. E, os canapés de petis-pois, tirinhas de tomate, rodelas de azeitona verde ou preta e de beterraba, fatias de ovos cozidos para decorar. O livro também dedica dez páginas aos Molhos, entre eles o Molho Branco, o Molho Bechamel, o Molho Hollandez, o Molho a Maitre d’hotel, o Molho Mousseline, o Court Bouillon, o Molho de Mayoinese, o Molho Tártaro, o Molho de Tomate, o Molho Madeira e o Molho de Escabeche.

A obra de D. Maria Thereza apresenta alguns produtos industrializados, e de um modo geral, predominam os postulados da cozinha francesa e suas técnicas como o roux, por exemplo, e de palavras do vocabulário culinário francês como bouquet e caramel. Quanto aos doces, são setenta e cinco páginas onde se perfilam receitas tradicionais da doçaria portuguesa; Receitas de clássicos franceses como macarons, bavaroise, génoise, madalenas, éclairs, petit-four, tarteletes, etc.; Receitas regionais brasileiras como mãe benta, bala de café, pé de moleque, brevidades, bem casados, bolo de mandioca puba, etc. E, entre as receitas inglesas, figura a do Silvia’s cake, um tipo de pound cake (contém um pound de cada ingrediente: manteiga, açúcar, farinha de trigo e ovos) acrescido de amêndoas assado em tabuleiro, e depois coberto com uma calda de laranja. Quando frio, se corta em pedaços ou losangos. O Silvia’s cake é, portanto, um tipo de bolo inglês, cuja receita é, curiosamente, muito encontrada nos antigos cadernos de receita do Vale do Paraíba.

Acredita-se que a receita que era utilizada nas festas da corte do Rio de Janeiro foi introduzida pelas baronesas nas fazendas de café do Vale, no século XIX. Para o quarto centenário da cidade, o Silvia’s Cake foi batizado de Bolo São Paulo e se popularizou nos livrinhos de receita que acompanhavam os novos equipamentos elétricos de cozinha.

Como não teve a mesma procura dos outros cursos profissionalizantes tal qual corte e costura, bordado e confecção de chapéus, as aulas de arte culinária na Escola Profissional Feminina foram encerradas em 1917. A professora abriu, então, seu próprio curso divulgando uma pequena nota no jornal O Estado de São Paulo, em que relacionava a boa dona de casa aos indispensáveis conhecimentos de arte culinária.

Posteriormente, Maria Thereza lançou seu segundo livro: Supplementos às Noções de Arte Culinária que oferece, além de novas receitas, cardápios para “Regimens” sugerindo receitas adequadas e apontando a importância da restrição de ingredientes nas diferentes enfermidades, em um tempo que antecede, em quase duas décadas, a criação do primeiro curso de nutrição em São Paulo.

Apesar de sua importância para a cozinha paulista, infelizmente, temos muito pouco registro sobre sua vida. Sabemos que nasceu na capital, em 1865, filha de um rico comerciante português que veio a perder tudo. Seu tio materno, Hilário Pereira Magro, era proprietário do Café e Hotel do Commercio, onde trabalhava o confeiteiro Macedo com quem D. Thereza aprendeu o ofício. Era casada, teve filhas que seguiram na profissão, e faleceu em 1944.

Como legado, além dos livros, nos deixou a introdução nas festas paulistanas de cajuzinhos, olho de sogra, e camafeu de nozes, e certamente, muitas outras coisas que esquecemos. Cada livro de Maria Thereza, entretanto, pode nos servir ainda como objeto de cultura material, uma vez que fornece dados para a evolução da comida paulista, sob o ponto de vista histórico, estético e visual. Trata-se de uma instância de consagração importante por fornecer parâmetros para o gosto alimentar, e funcionar como disseminador de gostos alimentares e difusor de usos e costumes da primeira metade do século XX.

REFERÊNCIAS

“Arte Culinária”. Jornal O Estado de São Paulo, 18 de setembro de 1917, p.7.

 

COLOMBECK, Patricia. Caetano de Campos a escola que mudou o Brasil. São Paulo: Edusp, 2016.

 

COSTA, Maria Thereza de Abreu. Supplemento às Noções de Arte Culinária. São Paulo: Officinas Graphicas da Ave Maria, 1936.

_________, Noções de Arte Culinária. São Paulo: Saraiva & Cia, 1947.

 

“Escola Normal”. Jornal O Estado de São Paulo, 09 de junho de 1912, p. 5.

 

GOMES, Laura Graziela; Livia Barbosa. “Culinária de papel”. Estudos Históricos, nº 33 (2004).

 

HOMEM, Maria Cecilia Naclério. Cozinha e Indústria em São Paulo. São Paulo: Edusp,2015.

 

SILVA, João Luiz Maximo.Cozinha Modelo: O Impacto do Gás e da Eletricidade na Casa paulistana (1870-1930). São Paulo: Edusp, 2008.

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Joyce Galvão bateu um papo com a Lúcia Soares sobre esse artigo e mais assuntos relacionados à confeitaria brasileira. Assistah!

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