Natal é memória
Natal é memória

Cozinhar e partilhar o alimento é uma das poucas tradições que se repetem, mesmo que de forma diversa, em todas as culturas do mundo.

por Arthur R. Lazzarotto

Chegou a época do eterno debate brasileiro sobre passas na comida. Aquela temporada dos mais diversos sabores de panetones (embora algumas lojas vendem o ano inteiro). Afinal, por que não?

Originalmente, a data de celebrar o Deus Sol no Império Romano foi transformada pela Igreja Católica no aniversário de Jesus. E também, na noite em que as crianças aguardam o bom velhinho com seu trenó mágico, uma festa que ganhou proporções que vão além de sua origem religiosa.  A tradição de sentar a mesa e dividir uma refeição, a famosa ceia, se expandiu para vários grupos, assim como a troca de presentes.

Compartilhar a mesa natalina não é uma exclusividade das famílias tradicionais,  especialmente no ano pandêmico de 2020.  Para alguns, a família toma forma em seus amigos mais próximos.

Para além da festa cristã, Natal é sobre compartilhar e cada cultura tem seu jeitinho especial. No lado oriental do planeta muitos japoneses, por exemplo, jantam em uma famosa rede de fast-food. Mas, perceba que o ato de se sentar à mesa e compartilhar uma refeição está presente, independente do local ou formato.

Minha família, por exemplo, tem uma dinâmica curiosa… Com a minha mãe a ceia é realizada no almoço do dia 25, já com meu pai, é feita um tradicional jantar de virada. O cardápio do almoço se resume em churrasco no espeto (sou de Porto Alegre), salada de batata e farofa (a Tissiani Zorzi está certa, gaúcho adora uma farofa!). Para a noite de véspera, o menu já era um pouco mais dinâmico, pois a festa reunia cerca de 30 a 40 pessoas, cada um com sua contribuição. Lembro de sempre ver um pequeno leitão assado deitado na mesa, com pele crocante e aroma tentador. A farofa também estava presente (claro!) junto com uma lasanha que costumava variar de sabor a cada ano. O polêmico arroz com passas nunca faltava. A mesa das crianças, e mais tarde dos jovens, separada dos adultos, era meu destino.

A surpresa ficava sempre para a hora da sobremesa. Elas mudavam conforme tendências ou, as novas receitas que minhas tias tinham descoberto. Sorvete, docinhos, mousses e algo envolvendo uvas eram sempre frequentes. Haviam ainda os doces que eu nunca tinha provado, como um doce de batata doce que eu me lembro até hoje! O sabor e textura eram totalmente diferentes dos outros doces presentes na mesa e, para um intolerante como eu, era como um presente, preparado especialmente para mim!

Nos últimos anos, namorando a ideia de cursar gastronomia, eu preparava alguma receita, geralmente uma torta, afim de testar minhas habilidades e contribuir para esse momento tão especial!

Existem ainda aquelas vivências que me são contadas, mas não me recordo… Eu era muito novo para lembrar como minha avó preparava nosso tradicional almoço, e assim, minha mãe tira a poeira do velho livro de receitas e me conta como eram os preparativos natalinos.

As tradições não são fixas, elas precisam evoluir. Se estagnam acabam se perdendo no tempo e caem no esquecimento, como alerta Massimo Montanari no livro Comida como Cultura. Nos últimos dois anos não passei o Natal em família por diversos motivos. Na noite anterior ao Natal cheguei no restaurante em que trabalhava e só então, descobri que eu teria o dia de folga. O problema é que eu estava longe de casa e não tinha nada planejado…. O jeito foi me reunir com os outros cozinheiros e estagiários para celebrar o Natal comendo pizza no restaurante de Kebab (por serem muçulmanos eram os únicos que abriram na cidade).

Eu nunca tinha imaginado passar o Natal comendo pizza enquanto ouvia rezas em árabe… Mas, ficamos reunidos, compartilhando histórias e devorando pizzas! Foi especial de uma forma inesperada!

Outra vez eu tive tempo de me programar e passei o Natal com amigos. Compramos um espumante especial para o brinde, preparei rabanadas, tínhamos uma mesa repleta de aperitivos e um churrasco sendo especialmente preparado. Ficamos madrugada adentro rindo e discutindo o rumo de nossas vidas.

Ao longo dos tempos as pessoas mudaram, mas o ritual de compartilhar uma refeição, permaneceu. Cozinhar e partilhar o alimento é uma das poucas tradições que se repetem, mesmo que de forma diversa, em todas as culturas do mundo. Nenhum outro animal compartilha preparos, brinda e aguarda ansiosamente pela sobremesa.

Cozinhar é o que nos tornou humanos, teoriza Richard Wrangham em Pegando Fogo. E cozinhar também é cada vez mais raro….

Dedicar algumas horas a uma refeição e compartilhar a mesa com outras pessoas, tem perdido espaço em nossas vidas. Todos já ouvimos esse estatística! O livro Cozinhar, de Michael Pollan, conta detalhadamente isso, e mostra como podemos voltar de alguma forma a cultivar este hábito o qual nutre não só o estômago, mas a nossa alma e a de quem amamos. Vivemos tempos difíceis em um país desigual e, poder se sentar à mesa e partilhar uma refeição é um privilégio. Lembre-se sempre disso ao encarar seu prato de comida!

Para esse Natal que tal revisitar aquela antiga receita familiar, ou fazer aquele preparo diferente o qual você sempre cogitou? Se sobremesa é a bola da vez, tente algo novo daqui do Sobremesah. Quem sabe é hora de abrir aquele livro do chef que você admira e passou o ano olhando e nunca preparou. Sente-se com alguém e cultive laços, divida uma refeição e um momento especial… Dedique seu tempo a alguém!

E por favor, deixe o celular de lado, esqueça as notificações e o instagram por um breve momento. Aproveite, pois tudo é passageiro. São esses momentos que constroem nossas lembranças e criam memórias para toda a vida! E memórias permanecem até o fim.

 

 

imagem: Annie Spratt – Unsplash

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