


Notas sobre um doce afro-brasileiro
Ocorrências e variações do doce de colher, de influência africana, que remonta o período colonial, até hoje consumido no Nordeste
por Lucia Soares
“A rapadura comum tem uma doçura imperiosa e profunda, quase igualada pela do mascavo. […]O melado, além de violência no gosto, tem o macio do veludo na consistência e ele que é lento e majestoso na tigela, torna-se ágil na língua e adquire difusibilidade semelhante à dos queijos mais afinados e dos mais radiosos vinhos. Gosto e cheiro se combinam como em sentido único, diante da rapadura, do mascavo e do mulatinho. Gosto, cheiro e tato, no caso do melado. No princípio só tato, no fim só gosto, quando se trata dos açúcares cândi, cristalizado e refinado que começam, no dente, como vidro moído, areia grossa e poeira fina – para chegarem à língua em espumosa e gorda doçura. Cada açúcar no seu lugar, cada açúcar na sua hora. É por isto erro rudimentar querer classificar os açúcares em superiores, inferiores, de primeira, de segunda. Esse é o critério de quem os vende e não de quem os degusta […]”
Pedro Nava, Baú dos ossos, São Paulo, 2005.
Furrundu ou furrundum, sabongo ou sambongo, corrumbá, currumbá ou furrumbá, bazulaque e groló são vocábulos peculiares à determinadas regiões brasileiras, para designar um tipo de doce que tem como base o mel de engenho (também chamado melado, melaço ou mel de furo) associado à uma fruta (cidra, mamão verde, melancia, caju e coco, de acordo com a oferta local), e especiarias. Em algumas situações, também se observa a utilização de garapa (caldo de cana), mel de rapadura ou açúcar mascavo.
Trata-se de um doce de colher, de influência africana, que remonta o período colonial, até hoje consumido no Nordeste, sobretudo, por ocasião das festas juninas. Além disso, é encontrado como um doce típico da região Centro-Oeste (Mato Grosso e Goiás), do Vale do Paraíba (SP), e em Minas Gerais, principalmente, na região do Serro e Diamantina.
“As frutas, assim como os bolos e doces, têm uma expressão simbólica na vida social europeia e nesse caráter continua no Brasil” explica Luís da Câmara Cascudo. De fato, esse comportamento pôde ser verificado desde os primórdios da colonização. Entretanto, muitas receitas se perderam, sobretudo, a partir do Império. Desse modo, essa pesquisa tem como objetivo rastrear ocorrências e variações de um doce tão importante para a sociabilidade brasileira, desde o tempo do Brasil Colônia, observando sua capacidade de resistência, sobretudo, a partir de meados do século XIX.
Um doce vulgar composto por fruta, um subproduto do açúcar e especiarias
Desde 1500, a célebre frase de Pero Vaz de Caminha na carta endereçada à D. Manuel, já anunciava: “nesta terra, em se plantando, tudo dá”. De fato, o consumo de frutas nativas ou aclimatadas no Brasil é notícia, desde meados do século XVI. Na Bahia, por exemplo, Frei Vicente do Salvador enumera cajus, cocos, melancias e cidras, referindo-se, inclusive, às suas conservas, e à produção dos engenhos de açúcar. Gabriel Soares de Sousa se refere a produção de açúcar nos engenhos da Bahia e de São Vicente, onde aponta a confecção de doces de frutas, em especial a marmelada que chegava a ser exportada para outras capitanias. Sobre esse assunto, Cascudo reforça: Sousa “enumera exaustivamente [as frutas] informando da utilização nas conservas, confeitados, doces secos ou em calda de açúcar, como o sumo da própria espécie. As nativas e aclimatadas tornam-se nacionais na preferência popular.”
Assim, misturadas ao açúcar, nossas frutas compuseram verdadeiras sinfonias do paladar, sob a batuta de sinhás portuguesas e mãos africanas, que tanto encantaram estrangeiros e viajantes, desde os primeiros anos da colônia. Durante o ciclo da cana-de-açúcar, a expansão da indústria açucareira, em Pernambuco, alavancou a proliferação de engenhos, levando a produção de açúcar a alcançar cifras inimagináveis, em 1710, chegando a exportar quase um milhão e trezentas mil arrobas de açúcar. Porém, como a produção de açúcar era exportada para Portugal, nessa terra, nem tudo que adoçava era ouro branco.
Os subprodutos da cana de açúcar: o mel de engenho, o caldo de cana (garapa), a rapadura, e o açúcar bruto (mascavo), de acordo com Mario Souto Maior, eram considerados itens da alimentação dos escravos e da população desvalida, primos pobres do açúcar.
A popularização do mel de engenho entre os menos favorecidos deveu-se, sobretudo, à falta de recursos financeiros. A abundância do mel exalando um cheiro forte e enjoado que vinha da casa-de-purgar, e o descuido com a higiene em seu processo de produção, tornavam-no um produto de pouco valor. É por essa razão que Maior classifica os doces produzido com mel de engenho como pertencente à nossa doçaria pobre, popular, aquela a que os escravos e o povo simples tinham acesso.
Contudo, em dias de visita na casa-grande, Maior relata que esses produtos também eram expostos sobre a mesa rica de jacarandá, entre toalhas de renda e talheres de prata, embora os donos da casa e suas visitas apreciassem doces produzidos com açúcar, uma vez que estavam acostumados aos doces em calda feitos com açúcar e frutas do pomar, goiabas, cajus, jacas e laranjas. Informação que Gilberto Freyre confirma, ao relatar que na boa mesa patriarcal “[…] a sobremesa, a tapioca seca, a tapioca molhada, o beiju, o doce de coco verde, o sabongo, a cocada, o sorvete de coco, uma variedade de bolos em que o gosto de coco se faz sentir junto com o açúcar ou o mel de engenho.” Portanto, Maior e Freyre admitem a circulação do mel de engenho também na mesa da elite, o que nos leva a crer que à casa-grande era facultado o direito de escolher o tipo de açúcar a ser utilizado, enquanto à senzala e ao povo simples restavam os subprodutos da cana-de-açúcar.
Assim, com acesso ao mel de engenho, para se chegar a esse “doce vulgar” faltava pouco. O coqueiro chegou ao Brasil, no século XVI trazido pelos portugueses e foi plantado em grande parte da costa brasileira: “Comer coco era a normalidade escrava e ainda popular” registrou Cascudo. ; A cidra, por sua vez, também foi trazida pelos portugueses no séc. XVI, para garantir as conservas de açúcar; Quanto ao consumo de mamão, melancia e caju, Cascudo registra: “Onde vicejassem cajueiros o negro ia buscar cajus. Fugia de noite, para despojar os cajuais, mesmo palmilhando quilômetros para o saque. Trazia-os maduros, de vez e verdes. Dos cajus, goiabas, polpa de ananases, mamões, não desperdiçavam nada. Ia tudo para dentro. A melancia era disputada. Muito difícil defender dos escravos um roçado de melancias.” E quanto ao gengibre, esclarece que o africano, sobretudo o oriental, já o conhecia e costumava masca-lo. Outro dado importante é que os escravos rurais tinham direito à um pedaço de terra para plantar e criar animais para seu consumo. Assim, minha hipótese é que, com o acesso ao coco e mel de engenho e ao gengibre, a doceira escrava criou e batizou o doce na senzala, possivelmente, em Pernambuco. A partir daí há a possibilidade de a cocada preta ter sido obtida pelo prolongamento da cocção do doce, portanto, da apuração do ponto do sabongo, corroborando a suspeita de Lody: “[…] tanto açúcar, tão doce, cria-se dessa mistura um indício para a “tão celebrada cocada’, a nossa tão brasileiríssima cocada.” Daí para a cocada branca, teria sido um pulo.
Dos doces de mel de engenho com coco
SABONGO OU SAMBONGO
Definição de Sambongo, “s. m. (Pernambuco) espécie de doce feito de coco ralado e mel de furo. Também lhe chamam Currumbá, em Alagoas Bazulaque (B. de Maceió).”
O coco e a cana de açúcar têm o mesmo habitat. Em seu livro Açúcar (1997), Freyre cita a palavra ‘sabongo’ sete vezes, ratificando a importância desse doce para a cultura alimentar pernambucana. Descreve-o como um doce de coco maduro, acrescido de mel de engenho ralo e três cabecinhas de cravo da índia, que depois é cozido, até que se obtenha um ponto forte. Em outro trecho de outro livro Açúcar (1969), Freyre reforça que desde os tempos coloniais os grandes doces da casa-grande foram a marmelada, o caju e a goiabada, do mesmo modo que a banana assada ou frita com canela era estimada nas casas patriarcais, “ao lado do mel de engenho com farinha de mandioca, com cará, com macaxeira; ao lado do sabongo [doce de coco com o mel de engenho] e do doce de coco verde e, mais tarde, do doce com queijo – combinação tão saborosamente brasileira.” Isso nos leva a crer que o mel de engenho e o ‘sabongo’ circulavam livremente e indistintamente entre as mesas pernambucanas fazendo parte, inclusive, dos cardápios festivos.
Raul Lody destaca o ‘sabongo’ pernambucano como “uma receita que traz a ancestralidade de unir coco e açúcar, ou, no caso o mel de engenho.” Mas há um fato curioso que ele relata: o ‘sabongo’ também é chamado de ‘baba de moça’, em Pernambuco. Dado que, infelizmente, não foi possível confirmar no material pesquisado.
O Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, de 1889, como podemos ler acima, traz a denominação ‘sambongo’, em Pernambuco para o doce de coco e mel de engenho, enquanto ‘bazulaque’ representa o mesmo doce, em Alagoas. Luís da Câmara Cascudo, porém, diverge dessa afirmação, pois, para ele na realidade, o verbete deveria ser ‘badulaque’ (um guisado do Mosteiro de Alcobaça, em Portugal, muito utilizado para a ceia dos monges, constituído de bofes e fígado picadinhos), prato que tinha a aparência de coco ralado. Apesar disso, é importante notar que até hoje a palavra ‘bazulaque’ está relacionada à Alagoas, como é o caso do queijo do mesmo nome. Embora o doce com essa denominação tenha desaparecido. Talvez, por isso, seja bazulaque mesmo.
A origem da palavra ‘sambongo’ aponta para uma língua banta, segundo Antônio Houaiss. Cascudo define sambongo e sabongo como vocábulos que representam o mesmo doce em Pernambuco. Ele também assegura a origem africana do termo sabongo, inclusive, por se referir à um arbusto de Angola.
Para a receita de sabongo é necessário: 1 coco; 4 xícaras de açúcar ou mel de engenho; 2 xícaras de água; 4 cravos da índia. Raspe o coco e leva ao fogo com o açúcar ou mel, a água e os cravos. Deixe no fogo até dar o ponto forte. (fonte: Nininha Carneiro Cunha. Comida & Tradição: Receitas de família. Recife: Editora da Família, 2002, p. 114). A presença da receita nesse livro pode ser justificada por se tratar do resultado de duas décadas de pesquisa da autora, falecida em 1998, que buscava a perpetuação de receitas das famílias pernambucanas. No entanto, a receita não foi encontrada em outros livros tradicionais de cozinha, como o Dona Benta Comer Bem, nem em mais recentes, como História dos sabores pernambucanos, de Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti. Ou seja, podemos dizer que na “culinária de papel”, o sabongo tem interessado apenas aos estudiosos da alimentação brasileira, mas vem resistindo pela transmissão da cultura popular, apresentando-se como um quitute das festas juninas.
CURRUMBÁ, CORRUMBÁ E FURRUMBÁ
Definição: “Currumbá – doce de coco ralado e mel de furo, algumas vezes em lugar de coco, empregam o mamão verde. É provavelmente de procedência africana; sinônimo de sambongo. Peculiar a Pernambuco (B. Rohan).”
Raul Lody define Corrumbá como um tipo de cocada escura e de consistência mole que é feita com coco ralado e mel de engenho. Cascudo afirma que a presença do coco nas receitas está relacionada com a proximidade do litoral, embora possa ocorrer também no agreste, em menor proporção. Esse é o caso do currumbá do Seridó, uma região localizada no sertão entre a Paraíba e o Rio Grande do Norte. Para o doce de coco com mel de engenho seridoense há mais um sinônimo – o furrumbá –que acredito se tratar de uma adulteração (troca da letra C pela F) da palavra original currumbá, na região, pois não encontrei nenhum outro registro dessa grafia.






D. Zélia Maria, uma doceira seridoense que se identifica como afrodescendente, confecciona a iguaria que chama de furrumbá. Ela conta que esse doce é de origem afro-brasileira, e que aprendeu a fazer a receita com mulheres negras dessa região que o acondicionavam em panelas de barro, à temperatura ambiente, para conservá-los por até seis meses. D. Zélia lembra que a receita original continha gengibre, mas ela prefere utilizar apenas cravo, canela e erva-doce.
A receita do furrumbá de D. Zélia leva coco, mel de rapadura, açúcar e especiarias: cravo, canela e erva-doce, e para finalizar, castanha de caju. Não foi possível encontrar qualquer outra receita, em todo o material pesquisado. A ensinada por D. Zélia foi recuperada pela Projeto de Pesquisa e Extensão Tronco, Ramos e Raízes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), em que dados etnográficos foram coletados na região do Seridó, rastreando memórias de antigas cozinheiras negras. Atualmente, o doce é comercializado como um produto típico atendendo à demanda turística da região.
Também achei um doce similar coletado por Maior, no Cariri cearense, com características semelhantes, composto por caju e mel de engenho, chamado ‘groló’. Porém, não consegui encontrar nenhuma outra citação de groló nos materiais consultados. Ainda no Nordeste, há relatos da produção desse mesmo doce feito com casca de melancia.
Dos doces de mel de engenho com cidra ou mamão verde
FURRUNDU OU FURRUNDUM
Definição: “Furrundum (São Paulo), espécie de doce feito de cidra ralada, gengibre e açúcar mascavo. Também dizem Furrundú.” E mais: “Guloseima da região de São Paulo. Doce de cidra misturado com rapadura é o delicioso furrundum. O mesmíssimo furrundu mato – grossense que ao invés de levar cidra é feito com mamão.” Esse dado não foi confirmado. Há registros também desse doce produzido com pau de jaracatiá e garapa, na zona rural paulista, e com pau de mamão, no Centro-Oeste.
Antônio Joaquim de Macedo Soares se refere à furrundu (variante de farrundu) como uma dança ruidosa e desordenada onde o prefixo ‘far’ seria desordem e ‘lundu’, uma dança de Angola. Essa informação aproxima o nome do doce com a cultura africana, como acontece no resto do país.
Para termos uma ideia do consumo do Furrundum em São Paulo, nessa conferência proferida em 1925, o Dr. Affonso de Freitas Junior descreve uma cena no interior da cozinha de uma fazenda paulista: “À noite, nas amplas cozinhas, as cativas peneiravam canjica na sururuca, passavam pudim nas peneiras, mexiam as taxadas ferventes de furrundum sobre o poiá, ao estalejar das capororocas lambidas pelas labaredas […]” Outro trecho, dessa vez do livro de Maria Adail Philidory de Faria, relata: “Foram feitas tachadas de doce de leite, ovos, coco, abóbora, batata doce e roxa, limão, e do clássico ‘furrundum’ (cidra com rapadura e gengibre ) doce predileto dos paulistas, nos dias de festa!” Um detalhe importante é que todos esses doces estavam sendo produzidos para uma festa de casamento numa fazenda de café em que compareceria até o Imperador D. Pedro II. São relatos como esses que nos permitem mensurar a importância do furrundum para São Paulo.
Paulo César Garcez Marins também observa que o furrundum e outros doces vindos dos tempos coloniais, como a canjica, resistiram ao tempo e se mantiveram presentes nos séculos XIX e XX, ao lado de outros doces igualmente tão populares como a paçoca de amendoim, a marmelada, a bananada, o doce de abóbora, batata-doce e batata-roxa africana. Entretanto, o furrundum sobreviveu apenas no Vale do Paraíba, como um doce típico daquela região, estando presente nas principais festas religiosas: São João, Festa do Divino e nas demais festas de santos de devoção popular.
Receita de doce de cidra (Furrundu ou furrundum): Rale cidras e deixe de molho, durante 3 dias, em água que se troca diariamente. No quarto dia, dê uma fervura. Faça uma calda grossa com açúcar cristal e acrescente a cidra. Cozinhe até dar ponto bem apurado, mexendo sempre. Se quiser fazer em pedaços pingue em tabuleiro e leve para secar ao sol. Quando este doce é feito com açúcar mascavo ou rapadura, em vez de açúcar cristal, chama-se furrundum (Vale do Paraíba). Fonte: Jamile Japur. Cozinha tradicional paulista. São Paulo: Folc-Promoções, 1963, p. 64. Como o sabongo, a receita de furrundu não se encontra facilmente disponível em livros de receitas. Encontrei apenas no de João Rural, No fundo do tacho, de 2013, p.133, grande estudioso e divulgador da cozinha vale-paraibana.



O furrundu é considerado uma tradição cuiabana e pantaneira. Na primeira edição do festival gastronômico Menu Veja Comer & Beber, em Cuiabá, em 2017, o Restaurante Peixaria Okada resolveu apostar na tradição na hora de compor seu menu, porém, investindo em técnicas de produção e na apresentação final, dando um ar contemporâneo e ressignificado à produtos tradicionais locais. A ‘Trilogia cuiabana’ trouxe os doces de leite, caju e furrundu expostos de maneira atraente e apetitosa, sincronizada com os preceitos e anseios da gastronomia de nosso tempo. Uma atualização que permite o interesse maior pelo doce.
No Mato Grosso do Sul, a doceira, Denize Cafure, acabou cedendo ao insistente pedido de uma cliente, passando a produzir o furrundum para vender em sua loja no Aeroporto Internacional de Campo Grande. Entre os doces estão o de mamão, queijadinha, abóbora e doce de leite, considerados sabores mais comuns, ao passo que o furrundú é exótico. Mas ela garante que quem gosta de sabor forte, vai aprovar. Para a receita de furrundu do Mato Grosso, são necessários: 3 mamões verdes; 2 rapaduras; gengibre, cravo e canela. Ralar os mamões na parte mais grossa do ralo. Levar ao fogo com a rapadura, gengibre, cravo e canela. Deixar cozinhar em fogo brando, mexendo sempre, até aparecer o fundo da panela. O ponto é o seu desejado (de colher ou de tablete). Servir gelado. (fonte:
https://leiamaisba.com.br/2013/04/22/voce-precisa-conhecer-esse-doce-de-mamao-rapadura-chamado-furrundu)
Nessa região ainda é possível encontrar furrundu produzido com o caule do mamoeiro, também chamado de pau de mamoeiro:
“Furrundu doce de pau
do pau do mamoeiro
até parece com uma dança,
mas é só doce caseiro.”
Moisés Martins compôs Furrundu e outras canções que enaltecem a cultura cuiabana. Para ele, suas músicas expressam “um desejo latente da preservação e valorização da cultura regional.”
Para a receita de furrundu de pau de mamão utiliza-se: 1 kg de rapadura de boa qualidade; 2 Kg de tronco de mamoeiro, parte próxima das folhas; 50g de gengibre; 50g de canela. Lavar bem o tronco de mamoeiro e ralar na parte grossa, depois de ralado cobrir com água e deixar por 5 minutos para retirar o leite, retirar a água e repetir o procedimento mais uma vez. Derreter a rapadura em uma panela, acrescentar o gengibre ralado e a canela em pau, misturar bem e acrescentar o tronco do mamoeiro escorrido, misturar e deixar ferver até chegar ao ponto do doce que demora, no máximo, uma hora de cocção. Fonte: Hênio Delfino, Gastronomia no Brasil, Região Centro-Oeste. Brasília: Clube de autores, 2013, p. 17.
Já em Goiás, resiste a tradição servir furrundum, pipoca, amendoim e batata-doce nas festas juninas. A receita de furrundum goiano não difere muito da paulista, pois, é composta por uma cidra ralada; calda de rapadura; uma colher (das de chá) de gengibre ralado; três dentes de cravo moído. Dar uma fervura e ir lavando e trocando a água até perder o amargo. Ponto de colher (quando ver o fundo do tacho). Só é servido com colher. (fonte: Bariani Ortencio. Cozinha Goiana. Goiânia: Editora Kelps, 2004, p. 141). Nem o livro de Cora Coralina traz essa receita, apenas reproduz a versão do doce de cidra com açúcar.
Em Minas Gerais, na região do Serro e Diamantina, a cultura do doce remonta o período colonial. Entre os principais tipos relatados estão rapadura, cocada, pé de moleque, ambrosia, arroz doce e doces de frutas, onde além dos tradicionais de banana, goiaba, abóbora, cidra ralada, etc., e também o furrundu. Nesse trecho de Autran Dourado, ele confirma a presença do doce: “A intimidade com as gentes das cozinhas levou-a aos serviços. Poucas eram as que estranhavam quando ela pegava na mão de pilão e começava a socar. Pilava milho, torrava e moía café, debulhava amendoim, catava arroz, descascava batatas. Quando gostavam de suas prendas, mostrava que sabia fazer paçoca, virar pele, torresmo. Fazia pés de moleque, furrundum de cidra ralada, cará cozido a seu modo, broinha de fubá, biscoitos de polvilho que trincavam nos dentes, aquelas quitandas todas e manjares.” Sem mencionar esse nome, chamando apenas de Doce de mamão com rapadura, a famosa cozinheira mineira nascida no Serro, D. Lucinha, disponibiliza em seu livro a receita de um doce de mamão verde feito com rapadura e cravos que nada mais é do que o furrundu: 1 kg de mamão verde, 1 kg de rapadura, 6 cravos e a água necessária. Faz-se uma calda com a rapadura e os cravos, e junta-se o mamão verde. Cozinha-se até o doce soltar do fundo do tacho. Essa foi a única ocorrência que encontrei em Minas Gerais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O novo referencial do gosto foi um dos grandes desafios que a cultura popular brasileira enfrentou, depois da chegada da corte portuguesa ao Brasil, em 1808. A partir daí passou a se instalar um padrão de consumo alimentar, orientado pela burguesia que emergia na Europa. A vinda de cozinheiros, padeiros e confeiteiros estrangeiros e o maior acesso à ingredientes europeus elevou as exigências das elites a outro patamar, criando uma certa tensão entre elementos tradicionais da cultura popular e os novos preceitos culturais burgueses.
Nesse trecho do periódico O Carapuceiro, podemos observar uma das críticas do Padre Lopes Gama, em 1838, aos vícios e costumes pernambucanos daquele tempo: “Um prefere mel de furo, a doce de caju seco, e ao melhor pudding; outro deixará o mais doce ananás, o mais delicioso melão por um cachinho de pitombas; esta não dispensa roer um osso mole, desprezando o melhor lombo de vitela, aquela não trocará a sua cocadinha pelo melhor pastel de nata, e desprezará arroz de leite para comer sabongo (que dizem ser mel com coco).” O ataque ao sabongo e a outros doces coloniais tornou-se cada vez mais perceptível, com o acirramento da polarização entre hábitos alimentares rústicos e civilizados. Portanto, a partir do momento que a alimentação assumiu um papel de distinção social, o modelo alimentar praticado, onde predominavam certas comidas rústicas, foi ameaçado para dar lugar a novos pratos, processos, utensílios e equipamentos condizentes com a nova ideologia.
As ocorrências desse doce verificadas nessa pesquisa, foram possíveis, graças a perseverança de algumas comunidades, muitas vezes motivadas por algum líder esclarecido. D. Lucinha foi uma dessas pessoas. Quando vivia no Serro, foi professora primária e observou que quando as crianças traziam para a merenda banana cozida, pedaços de mandioca, naco de rapadura e milho cozido, costumavam escondê-los no mato, enquanto comiam com gosto e exibição quando se tratava de pedaços de bolo, biscoitos e rosquinhas. Foi ela que [re]ensinou o gosto de comer o que eles plantavam e colhiam, a importância e a beleza dos alimentos que aprenderam a fazer por herança. Seu trabalho consistiu em criar uma merenda escolar que produzia com os alunos, com os ingredientes trazidos por eles, para o cardápio do dia. Assim, tinha o dia da mandioca, do cará, ou mangarito com melado, da banana assada no borralho, do angu doce, etc. Foi com perplexidade que constatou como a comunidade estava esquecendo depressa os costumes alimentares tradicionais e típicos. Essa mesma atitude, a autora relata ter percebido nas residências, mesmo nas mais humildes, como uma negação dos alimentos, processos e utensílios regionais que eram substituídos por macarrão, maionese, batata-frita, doce de frutas em lata, refrigerantes, etc. e panelas de alumínio. No entanto, na realidade “Quanto maiores as posses, mais escondidos do visitante eram os hábitos diários de comer, mesmo que estes fossem os que verdadeiramente apreciassem.” Esse fato também ocorreu em São Paulo, entre os barões do café, e deve ter acontecido por todo o país. Isso significa dizer que nossa população nunca abriu mão totalmente de seus hábitos alimentares tradicionais, embora achasse necessário negá-los para ser aceita como civilizada.
Quanto ao caso de D. Zélia, o projeto de pesquisa realizado pela UFRN revelou que um patrimônio cultural de matriz africana é a base da alimentação cotidiana do Seridó. Assim, a memória da escravidão silenciada por tantos anos, emergiu iluminando o passado de sombras e silêncios. Desse modo, “a retomada das memórias e a emergência étnica apoiam-se nos sabores e nas práticas culinárias tradicionais que substituem os silêncios e possibilitam recontar uma outra história.”
Que no futuro tenhamos muito mais histórias como essas para contar!
REFERÊNCIAS
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NUNES e NUNES, op. cit,, p.27.
CAVIGNAC, Julie Antoinette; SILVA, Danycelle. Sabores e práticas culinárias das cozinheiras negras do Seridó (RN – Brasil). Revista GeoNordeste, São Cristóvão, Ano XXX, n. 2, Edição Especial, jul./dez. 2019, p. 20-40.
imagem capa: Leandro Miranda para Gazeta Digital. Disponível em: https://www.gazetadigital.com.br/variedades/gastronomia/expedio-fartura-volta-a-mato-grosso/577256
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