O boom das aulas online de confeitaria
O boom das aulas online de confeitaria

O boom das aulas online de confeitaria

Mercado que ganhou ainda mais força durante a pandemia vira opção de renda para confeiteiros. Mas é preciso ficar atento à qualidade.

por Juliana Bianchi

O mercado de ensino a distância (EaD) já era uma realidade em ascensão antes da pandemia. Projeções só do setor universitário previam que, até 2023, 51% desse segmento seria dominado pelo EaD. Mas, assim como aconteceu com os deliveries, o que já se apresentava como tendência de alta não só no ensino formal como em cursos livres foi acelerado e fortalecido nos últimos meses, fazendo muita gente antecipar planos ou investir em uma nova frente de trabalho que nem estava no horizonte.

Na confeitaria não foi diferente. Com chefs impossibilitados de abrir suas lojas, fazer eventos e dar aulas presenciais, muitos viram no ambiente virtual a saída para não ficar parado. Junte-se a isso a urgência de reinvenção de milhares de trabalhadores que ficaram sem renda e vislumbraram na habilidade caseira de fazer doces um caminho possível. A fórmula foi perfeita para que aulas de confeitaria explodissem para todos os lados. Indo de lives diárias de receitas nas redes sociais a cursos de diferentes temas, profundidades e preços, ofertados nos mais diversos formatos e plataformas.

“Apareceu muita gente dando aula na internet. Mas você não se transforma professor da noite para o dia. É um processo longo. Exige muito conhecimento acumulado, preparo, didática, referências”, afirma Marcelo Bergamo, professor do curso de Gastronomia da Universidade Anhembi Morumbi, que acumula 20 anos de experiência como docente universitário. “O que mais me incomoda é ver gente ensinando receitas que ferem as técnicas clássicas sem deixar claro as bases corretas”, completa.

“Ser professor é mais do que fazer dinheiro com cursos. É uma responsabilidade muito grande, porque se trabalha com o sonho do outro. As pessoas querem aprender com você porque acreditam que você fará diferença na vida delas”, desabafou Simone Izumi, da Chocolatria, nas redes sociais, em julho. O desabafo veio após ser alertada de que o conteúdo de seus cursos estava sendo plagiado sem dó nas redes sociais. O que, não raro, se vê por aí. De cópias piratas de livros a apostilas completas de aulas e receitas.


Quem vivenciou a facilidade de assistir a aulas de pijama, a hora que se desejar, revendo o conteúdo inúmeras vezes vai querer abrir mão da facilidade? A ver. Foto: Unplash

UNIVERSAL OU CRIME

O tema levanta a discussão sobre direito autoral na gastronomia. É possível patentear uma receita ou o conhecimento é universal e precisa ser compartilhado para servir de base para o desenvolvimento do próprio setor? “O conhecimento não é commodity. Está aí para as pessoas usarem como quiserem e se criarem sobre ele”, acredita a chef Joyce Galvão. Autora do livro “A Química dos Bolos”, ela lançou, só nos últimos seis meses, dois cursos online com técnicas aprofundadas sobre bolos e tortas, além do próprio site Sobremesah, que inclui uma Escola online de Confeitaria, com conteúdo exclusivo construído ao longo de quase 10 anos de profissão e dedicação ao ensino.

“É um material muito pensado, que envolve estudo, pesquisa, cuidado estético e muitas horas de trabalho. Existe muito conhecimento da indústria que pode, e deve ser aproveitado na cozinha. Como profissional eu facilito a linguagem, mostrando como podemos, como confeiteiros, nos desenvolver mais”, diz. “Mas eu não sou a única detentora de um processo”, completa.

O que não significa que ver suas receitas reproduzidas por aí, sem crédito algum, não magoe ou gere uma ponta de revolta a que se dedica à profissão. Que o diga a confeiteira Bruna Rebelo, da CakeLover, que na semana de relançamento de seu curso online “Bolos de Casamento sem Drama 2.0” teve de lidar com uma conta falsa de Instagram que assediava os alunos que lamentavam não ter conseguido entrar na turma oferecendo a apostila de graça. “Tem gente que pega exatamente o nosso material e vende a apostila a R$ 10 ou grava aula pra comercializar muito mais barato. É um mercado bem traiçoeiro e complicado. Tem muita gente de má fé”, comenta ela que se tornou referência no ensino pela internet de bolos cobertos com buttercream.

“Esse tipo de atitude desmerece o meu trabalho e a conquista dos alunos, que economizaram e lutaram para fazer o meu curso. É uma falta de respeito. Se ensino é porque quero que você faça no seu comércio igualzinho ao meu e venda horrores, mas não é para ser professor”, afirmou Simone.

À frente de sua escola de confeitaria há oito anos, e com presença online turbinada durante a pandemia, o chef Diego Lozano diz que já aprendeu a desapegar. “Quando você se propõe a ensinar, está aberto a encontrar todo tipo de gente, dos que serão sempre gratos e te referendar, aos que vão copiar tudo exatamente como você entregou e nunca te citar. Faz parte. Já me estressei muito com isso, mas a maturidade ensina que não vale a pena. Se vendi a receita não é mais minha”, tranquiliza.

JOIO DO TRIGO

Para quem quer investir tempo e dinheiro em uma boa formação sem sair de casa não faltam nomes confiáveis. Dos já citados, a Flávio Federico, Rafael Barros, Cassio Cevallos, Marília Zylbersztajn, Henrique Rossanelli e Rodrigo Ribeiro, todos já contam com aulas digitais. Cada qual valendo-se de formatos e meios diversos: de lives no Instagram ou YouTube para atrair maior audiência, a grupos fechados no Facebook, Zoom, WhatsApp ou Telegram, passando pela publicação em plataformas próprias ou compartilhadas, como o Hotmart, que teve 322% de aumento nas buscas, segundo pesquisa apresentada no início de junho pelo Google.

Eleger profissionais credenciados, com conhecimento suficiente para fomentar o desenvolvimento da cultura gastronômica no país de forma correta é fundamental para garantir uma base fértil e sólida para que, no futuro, cada um possa encontrar sua própria assinatura e estilo dentro da cozinha.

É nesse ponto que meros reprodutores de receita que se lançam a dar aulas, sem base (ou ética) para criar conteúdos originais e embasados, se tornam ameaças ao crescimento do setor como um todo. “Se estão nos copiando é porque viramos referência. Mas, se as pessoas não estudam como devem e só ficam fazendo mais do mesmo, o mercado não evolui”, analisa Lozano, que abre até o fim do ano sua primeira loja física de doces e viennoiseries, a Casaria, impulsionado pelo sucesso de vendas dos cursos online lançados durante a pandemia. “Foi um trabalho insano, mas cada curso vai muito além da apostila. É uma consultoria”, conta o chef.

O esforço condensado para não perder o timming também se repetiu na escola Wilma Kövesi de Cozinha, onde o projeto de digitalização dos cursos estava engavetado há três anos. “Não é a mesma experiência. Não dá pra comparar. Estamos fazendo tudo com muito cuidado para entregar a mesma qualidade, mas a quantidade de técnicas que você consegue ensinar em uma única aula é muito menor no online do que no presencial”, acredita Betty Kövesi, diretora da escola.

COMO SERÁ O AMANHÃ

Enquanto os cursos seguem pipocando na web, os presenciais começam a ser retomados. E há quem diga que um ritmo muito mais lento de interesse os aguardem no futuro. Afinal, quem vivenciou a facilidade de assistir a aulas de pijama, a hora que se desejar, revendo o conteúdo inúmeras vezes e a um preço muitas vezes menor que o pago pelo presencial, descobriu um novo mundo difícil de abrir mão.

Mas é preciso lembrar que confeitaria (e gastronomia como um todo) é uma área baseada no trabalho manual, no qual a prática, os movimentos e até mesmo a forma correta de segurar os instrumentos são imprescindíveis para se tornar um bom profissional. Coisas que dificilmente o melhor dos professores conseguirá assegurar à distância. “Já tive que pegar, literalmente, na mão de aluno para ensinar o movimento correto pra bater um creme. O estar ali ao lado para corrigir é fundamental numa profissão artesanal como a nossa”, diz Marcelo Bergamo, que também teve de aprender a adaptar seu conteúdo para o online nesse período.

A ver para onde o apetite do público pelo modelo online, nos diferentes formatos, temáticas e padrões, guiará esse mercado no futuro. Aos profissionais, é preciso manter-se sempre atento para não deixar a qualidade cair. Afinal, educação pressupõe evolução.

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