


Caderno de receitas: um mergulho na história
Verdadeiro tesouro, das páginas de um caderno de receitas saem imagens, sons, diálogos, aromas e viagens mentais, que podem mudar e ganhar novos tons a cada consulta
por Juliana Bianchi
Foi a chegada da cesta de orgânicos, com um bom punhado de mandioca, que me trouxe à memória o bolo molhadinho e denso que minha mãe fazia com a raiz para levar nas festinhas juninas do colégio. Corri à estante, onde junto com os livros de dezenas de chefs famosos, guardo os cadernos de receita que herdei, para ver como reproduzir o sabor de infância.
Mexer em um caderno de receitas nunca é algo trivial, como uma busca na internet. É uma experiência emocional. Como aqueles livros infantis 3D, com castelos que saltam do meio, só que para adultos. De suas páginas saem imagens, sons, diálogos, aromas e viagens mentais, que podem mudar e ganhar novos tons a cada consulta. No virar de folhas de um caderno de receitas moram lembranças. Um pedacinho da história pessoal do dono que pode ser revelada. As pessoas ou lugares que marcaram aquele caminho com quitutes saborosos. Os dias agitados ou os fazeres mais frequentes, sinalizados por manchas no papel. E, foi exatamente essa pista que me levou a saber qual, das cinco receitas de bolo de mandioca existentes nos compêndios de minha mãe, era exatamente a que eu procurava. A que estava na página mais puída e amarelada pelo tempo, pelo uso.
“Abrir um caderno de receitas é como abrir um baú de tesouro. Nunca se sabe o que tem lá dentro. São gatilhos de memórias que não necessariamente estão ligadas à receita. Eles se tornam relíquias que contam a história da pessoa, da família, da sociedade, de uma época”, conta Juliana Venturelli. Professora e Mestre em Memória Social, ela teve contato com dezenas de cadernos de receitas de famílias do sul de Minas Gerais durante os anos de pesquisa para sua tese de mestrado – que se transformou no documentário “Lenha no Fogão” e no projeto de livro de mesmo nome – e pode comprovar a riqueza desses documentos.
“Para as filhas de fazendeiros, ele era parte do enxoval. Você tinha que ter um caderno com as receitas da família, feito de forma caprichada”, diz Juliana. Fosse para ensinar às empregadas ou mostrar o quanto se era prendada.
Quanto mais antigos os cadernos, mais receitas quase impossíveis de se reproduzir hoje dada a falta de precisão. “É como o pão de queijo da minha família, que dizia para colocar polvilho na bacia até a altura do punho. Qual a profundidade dessa bacia e o tamanho dessa mão? Era tudo muito no olho. Parte do aprendizado estava no gestual. O caderno era um complemento. Não era pra ser um livro de receita, como os da Rita Lobo, para quem nunca cozinhou ou acompanhou o preparo”, completa a pesquisadora.
Daí maior o proveito que se tira ao resgatar essas heranças acompanhado da própria dona das anotações ou de algum parente próximo, que ajude a remontar detalhes da história a partir dos fragmentos ali presentes. Quem era a Dona Ana, do Bolo de Milho Pedaçudo, ou a Cidinha, que justificou a inclusão da Canjica com Paçoca no rol de preferidos? Mais do que matar a curiosidade, a busca pelas referências pode abrir um enriquecedor canal de comunicação familiar. E com o tempo.
MUITO ALÉM DA COZINHA
Como se fosse uma espécie de diário ou porto seguro para diferentes anotações, um caderno de receitas vai muito além da cozinha, e, não raro encerra de desafios culinários, – como o “Biscoito Experimenta Nora” ou o “Bolo Espera Marido” –, a segredinhos de beleza – “para amaciar calos ou curar chulé” –, truques de limpeza – como tirar manchas, por exemplo –, instruções de costura, pintura ou crochê, ou mesmo coisas de cunho mais pessoal, como poesias, desenhos e brincadeiras, que podem revelar uma faceta até então desconhecida a quem lê.

“Em um dos cadernos da minha avó, encontrei uma letra jovem, fazendo testes de como ficaria o nome dela com o sobrenome do meu avô. É um lado romântico que nunca conheci”, lembra Ana Holanda, autora do livro “Minha Mãe Fazia – Crônicas e Receitas Saborosas e Cheias de Afeto” e curadora da mostra “Migrações à Mesa”, realizada em 2017, no Museu da Imigração, em São Paulo, a partir, claro, de cadernos de receitas.
Para os pesquisadores, esses materiais são ricas fontes de informação para reconstruir épocas. Seja pelos recortes de jornais ou “folhinhas” (calendários) soltos entre as páginas, que vez ou outra trazem referências a datas, fatos históricos, costumes e preocupações dietéticas (ou não, vista as grandes quantidades de gordura e açúcar usadas no passado). Seja pela grafia das palavras, o mix de culturas, as medidas, ingredientes ou modos de preparo recomendados.
Jornalista e pesquisadora da área da alimentação, Mariana Weber já se deparou com cadernos de receitas em sebos com recortes de jornal sobre a candidatura do Brigadeiro Eduardo Gomes à presidência da República, em 1945, fato que deu origem ao docinho mais famoso do Brasil; receitas de sequilhos de araruta (ainda que a fécula em si já não se ache facilmente); medidas baseadas em pires raso, ponta de faca, prato menos um dedo, garrafa ou mão cheia; e marcas batizando receitas, o que evidencia a influência da chegada de eletrodomésticos e produtos enlatados ao mercado nacional.
“Nos anos 50 muitos cadernos já tinham rótulos com receitas colados. Você começa a ver o uso do liquidificador para fazer sopas, o número de preparações com leite condensado crescer, e a margarina substituindo a manteiga e a banha de porco. Chega um ponto em que os cadernos vão ficando muito parecidos, com receitas repetidas”, observa ela, cujo interesse pelo assunto surgiu em 2013, com o nascimento do blog “O Caderno de Receitas” e culminou no livro “Cozinha de Vó – Histórias e Receitas que Trazem de Volta o Sabor da Cozinha Afetiva”.
O BÁSICO, FORA
Escrito exclusivamente por mulheres – lugar de homem não era na cozinha – os cadernos de receita foram por muito tempo um território bem particular, mas que refletia não só a narrativa de sua dona, como também de sua família. Por vezes catalogadas em índices que rapidamente perdiam a função – passar o caderno a limpo era um hábito comum –, as receitas eram registradas na ordem em que iam surgindo, sem distinção entre doces e salgados. Mas os preparos que ali entravam eram os “de agrado” ou aqueles destinados aos dias de festa. Talvez daí a supremacia dos quitutes e sobremesas. Novamente, não separados por datas especiais.
A cocada, que faz parte das lembranças de Ana Holanda no período de festas juninas, traz a referência de quem apresentou o preparo à família. São histórias que se cruzam e refletem o excesso de dulçor de um momento da história. Foto: acervo pessoal Ana Holanda foto: Juliana Venturelli
“O pé-de-moleque, a paçoca, a canjica, a broa de milho podiam estar lá, e as donas sabiam em que época fariam, mas não existia essa categorização”, afirma Juliana.
E, curiosamente, os pratos do dia-a-dia, não eram registrados. Ficavam apenas na cabeça de quem os faziam cotidianamente. “Mas é importante também anotar essas preparações mais simples para as pessoas conseguirem reproduzir no futuro. Sempre lembro da história de uma pessoa que entrevistei para a mostra, que chorava ao lembrar da esfiha feita sempre pela avó, mas que não estava nos cadernos de receita”, conta Ana Holanda. “Não era sobre comer esfiha, mas sobre trazer a lembrança daqueles momentos de volta. A gente perde uma parte da gente quando isso acontece”, completa.
Por isso mesmo as receitas de suflê de milho, carne de panela e cocada de leite condensado, que a mãe de Ana fazia, esta última especialmente nas festas juninas, já foram parar em seu próprio caderno. Assim como outras novas, que passaram a fazer parte da história de seus filhos.
“Minha missão para a festa junina desse ano é pesquisar a receita de doce de batata-roxa que comia na infância. Quero muito fazer e relembrar esse sabor, com casquinha açucarada e recheio macio”, aponta Mariana, que em outros anos já resgatou o curau, a torta cremosa de fubá e o bolo de amendoim da família.
DIGITAL x ANALÓGICO
Se há uma unanimidade em relação à importância de registrar as receitas e preparos para não deixar os sabores familiares se perderem, a forma de fazê-lo segue por diferentes caminhos. Há quem faça as redes sociais seu caderno virtual, com direito a fotos ilustrativas e passo-a-passo. Quem organize em pastas digitais. Quem prefira reunir recortes e bilhetes em pastas. Quem tenha apenas arquivos fotográficos. E quem não abra mão de papel e tinta, muitas vezes em cadernos personalizados, feitos especialmente para esse fim.

“O papel é fetiche hoje em dia. Por isso tenho visto muito caderno artesanal sendo feito, tipo scrapbook mesmo, caprichado. Mas também os tradicionais”, conta Mariana, que chegou a ser sondada para organizar o caderno de receitas de algumas famílias. Mas, o dela mesmo, ela deixa exclusivamente online, alimentando o blog que criou pouco após o nascimento do filho. “Quando quero alguma receita, pesquiso lá mesmo”, completa.
Ana Holanda é mais reticente em relação a isso. “Arquivo digital se perde”, acredita ela, que além de estar preenchendo as páginas de papel do seu, ajudou dezenas de vezes a “passar a limpo” os da mãe. Interessante que as “cópias” raramente significavam o fim dos originais.
Conciliadora, Juliana acredita que a união das tecnologias é o melhor a se oferecer. “Para mim, que vivi o analógico, os cadernos manchados são uma forma diferente de estar presente na cozinha. Mas hoje temos outras possibilidades, e ter esses registros em vídeo e fotos nas redes sociais os tornam ainda mais ricos. Se puder oferecer das duas formas, será incrível”, encerra Juliana.
foto capa: Parte do enxoval das moças bem-educadas, o caderno de receitas era feito com esmero. Parte do material de pesquisa de Juliana Venturelli, o caderno de Hilma dos Santos Arantes lhe foi dado de presente pela filha da patroa ao se casar. | foto: Aline Motta
VEM PRO ARRAIÁ DO SOBREMESAH!


Bolo podre paraense
VIVA SÃO JOÃO! VIVA!!!!
