A importância do “Comer” no Candomblé
A importância do “Comer” no Candomblé

A importância do “Comer” no Candomblé

Muitas das comidas ofertadas aos Orixás extrapolaram os muros dos terreiros e ganharam as ruas, seja no contexto das escravas de ganho, ou das negras forras, futuras baianas, donas dos famosos tabuleiros.

por Bernardo Arribada

O tráfico de africanos no período colonial foi o responsável por trazer para o Brasil indivíduos de diversas etnias e tribos, com suas particularidades culturais, e misturá-los em um cenário de violência e escravidão. Uma das diversas formas de resistência a esse contexto, no âmbito sociocultural, foi a criação de uma religião afro-brasileira – o Candomblé. Dessa forma, o Candomblé assume a função de herança, de manutenção de uma memória reveladora de matrizes africanas reinterpretadas.

Nos terreiros de Candomblé, os ritos têm como uma das funções primordiais a manutenção do Axé – a energia vital do mundo, a força que assegura a existência, permitindo o acontecer e o devir, e que está presente em tudo o que existe. Para manter essa energia vital pulsando é que os homens fazem oferendas aos Orixás, divindades atemporais, manifestações da vida e das forças da natureza. Dessa forma, o ato de comer – para além das funções biológicas e nutricionais tradicionais – possui um papel primordial nas religiões de matriz africana na constância desse fluxo energético, a constância da vida.

Comer equivale a viver, ter, manter, preservar, comunicar e reforçar memórias individuais e coletivas; celebra a vida e a ligação entre o Homem e as Divindades. Para o antropólogo Raul Lody (1998, p. 27) “comer é acionar o axé – energia e força fundamentais à vida religiosa do terreiro, à vida do homem”. O autor ainda afirma que o comer é “estabelecer vínculos e processos de comunicação entre homens, deuses, antepassados e a natureza” (LODY, 1998, p. 26).

 

Comer é antes de tudo se relacionar. O que é oferecido é codificado na complexa organização do terreiro, assim circulando e se renutrindo. Há sentido e função em cada ingrediente, e há significados nas quantidades, nos procedimentos, nos atos das oferendas, nos horários especiais e dias próprios, no som de cânticos, de toques de atabaque, agogô, cabaça e adjá ou do paô – pater palmas seguindo ritmos específicos. (LODY, 1998, p. 29)

 

Nos terreiros, local onde se dão os ritos do Candomblé, a comida ganha dimensões que vão além do corpo físico, estendendo o conceito nutricional para o plano espiritual. Assim, não só o homem come, mas também todo o material sacro do Candomblé: come o chão, comem os intrumentos musicais, como os objetos que representam os Orixás, os fios de contas e elementos consagrados que compõem a arquitetura do terreiro. Comer é expandir e fortalecer a energia que nos move e que nos mantém.

A alimentação sagrada também irá refletir o profundo conhecimento que os praticantes do Candomblé tem dos preceitos e contextos religiosos, uma vez que os pratos que compõem o cardápio votivo possibilitam o reconhecimento das peculiaridades dos orixás e de como agradá-lo, dos conteúdos dos mitos, lendas e rezas, dos ritos, refletindo, assim, o aprendizado adquirido na jornada religiosa nos terreiros. A amplitude dos ingredientes é diversificada, estabelecida à base de carnes, peixes, temperos, óleos, vegetais, grãos, cereais, farinhas que, organizados conforme preceitos religiosos, resultarão no cardápio votivo dos Orixás.

A cozinha, no espaço arquitetônico dos terreiros de Candomblé, tem importância primordial. É nesse espaço que as comidas e oferendas serão preparadas com todos os rigores e preceitos necessários. Tudo começa na cozinha; e nada pode ser comparado à energia que emana das comidas ali preparadas. As responsáveis pela manutenção do espaço, bem como da elaboração das comidas, são as Iabassês (Ìyágbàsè), cargo de confiança dado à uma mulher. Ela é a cozinheira do terreiro, responsável pela comida dos Orixás, a chamada comida de santo, e dos homens.

Muitas das comidas ofertadas aos Orixás extrapolaram os muros dos terreiros e ganharam as ruas, seja no contexto das escravas de ganho, ou das negras forras, futuras baianas, donas dos famosos tabuleiros. Quem nunca se esbaldou em um acarajé bem apimentado, ou naquele caruru bem temperado? Muitas dessas comidas, como os acarajés, os abarás, o caruru, o xinxim, o acaçá, o efó, hoje, são a base da chamada culinária do azeite, tão presente na região do Recôncavo Baiano e tão representativa na nossa gastronomia.

REFERÊNCIAS

BARROS, José Flávio Pessoa de. O Banquete do Rei – Olubajé. Uma introdução à musica sacra afro-brasileira. 2ª ed. Rio de Janeiro: Pallas. 2009.

 

BASTIDE, Roger. O Candomblé da Bahia (Rito Nagô). São Paulo: Companhia Editora Nacional. 1961. (Série Brasiliana – v. 313).

 

BRANDÃO, Darwin. A cozinha baiana. Origens, erudição, tradições populares, estudos. Rio de Janeiro: Ediouro. s/d. (Coleção Brasileira de Ouro).

 

CARNEIRO, Edison. Religiões Negras. Notas de etnografia religiosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1936. (Biblioteca de Divulgação Scientifica, vol. VII)

 

______. Candomblés da Bahia. 9ª ed. São Paulo: Martins Fontes. 2008.

 

FARELLI, Maria Helena. Comida de Santo. 9ª ed. Rio de Janeiro: Pallas. 2005.

 

FARELLI, Maria Helena. SILVA, Nilza Paes da. Comida de Santo (também cozinha baiana). Rio de Janeiro: Pallas. 1997.

 

LIMA, Vivaldo da Costa. O conceito de “nação” nos candomblés da Bahia. Afro-Ásia. Salvador. Bahia. 1976. p. 65-90.

 

LODY, Raul. Candomblé. Religião e Resistência Cultural. São Paulo: Ática. 1987.

 

______. Tem dendê, tem axé. Etnografia do dendezeiro. Rio de Janeiro: Pallas. 1992.

 

______. O povo do santo. Religião, história e cultura dos Orixás, Voduns, Inquices e Caboclos. Rio de Janeiro: Pallas. 1995.

 

______. Santo também come. 2ª ed. Rio de Janeiro: Pallas. 1998.

 

QUERINO, Manuel. A arte culinária na Bahia. 3ª ed. São Paulo: Ed. Martins Fontes. 2011.

 

REGIS, Olga Francisca. A comida de santo numa casa de queto da Bahia. Salvador: Corrupio. 2010. (Olga de Alaqueto)

 

SOUZA JUNIOR, Vilson Caetano. O Banquete Sagrado. Salvador: Atalho. 2009.

 

 

imagem capa: Tiago Celestino | Unsplash

MAIS DE BERNARDO?

Uma Breve História do Candomblé

Uma Breve História do Candomblé

O banzo, processo psicológico causado pela desculturação dos negros africanos refletiu na formação das religiões de matriz africana, em especial do Candomblé. A religião se tornou um fator cultural de resistência.
Saiba mais
Para se aprofundar na história da alimentação no Brasil

Para se aprofundar na história da alimentação no Brasil

Sou apaixonado por história da alimentação por isso apresento minha lista mais que especial para quem, como eu, deseja se aprofundar na nossa cultura alimentar.
Saiba mais
Translate »