Um bolo de chocolate realmente muito gostoso
Um bolo de chocolate realmente muito gostoso

Um bolo de chocolate realmente muito gostoso

A vida é feita das coisas que a gente ama, e que ela pode acabar muito cedo, mas enquanto existirem pessoas que compartilharam sabores com você, sua história existirá.

por Jaíne Mackievicz

A faquinha de cabo de madeira e serra gasta fatiava o bolo com formosura. Os poucos farelos que escapavam pelos lados eram catados ligeiramente pelos dedos compridos que imediatamente corriam à boca. Ainda caminho oscilante entre as recordações que guardo em mim para escolher o que era melhor: me alimentar do bolo ou do sorriso faceiro do meu pai, que tão satisfeito daquele bolo comia.

Meu pai era um exímio cozinheiro. Poucas vezes seguia receitas, porque quando naturalmente cozinhava, fazia dançar os ingredientes na panela numa combinação muito bonita, e cada colherada—de caldo, de salada, de uma torta, e, raramente, de uma sobremesa (onde seus dotes não alcançavam)—era satisfatória como o prazer de quem escuta uma bela orquestra. Herdei dele o dom de combinar os gostos. Da minha mãe, o de bater os bolos.

O perdemos em 2011, e de lá para cá eu também perdi a conta de quantas vezes perguntei a mim mesma se uma parte de mim também não se foi. Como navegar nas marés da vida adulta sem um guia? Como tirar dos planos uma parte? E agora quem se senta na cadeira da cabeceira da mesa? Acabei aprendendo que a gente aprende. Primeiro, porque não há o que ser feito para mudar, mas também porque a essência de quem você carrega consigo nunca se vai de vez. Nem o gosto de um bolo de chocolate que juntos vocês comiam.

Ele amava aquele bolo de chocolate, como amava tantos outros que pela nossa cozinha passavam. Mas o da Julia era especial, porque eu o preparei pela primeira vez no aniversário dele de 40 anos. A receita, que levava amêndoas impossíveis de serem encontradas no interior da escaldante Rondônia, adaptou-se às castanhas-do-Pará. “Tão bom quanto”, eu tentava convencer a mim mesma. “Ainda melhor”, ele dizia, lavando o bolo garganta abaixo com café quentinho. A casa toda ecoava seu sorriso bonito e o cheiro do bolo se misturava com o cheiro de contentamento de viver uma vida simples, mas muito cheia de doçura.

Seguindo os anos, uma inconveniente pergunta me acompanhava: algum dia aquela felicidade morna voltaria? Aquela que invade o seu ser aos poucos, aquela que vem de ocasiões fantasticamente simples, ao redor da mesa, com pouco dinheiro, mas muitos planos. Que ninguém se levante ou cheque o relógio, que a noite passe e nem se perceba, que ninguém corra a recolher os pratos e lavar a louça. Que todos se lembrem, depois de anos, do quão bonita foi a sobremesa servida.

Noites assim, lá em casa, sempre aconteciam. E no dia que seguia comia-se o resto dos bolos, suspiros, pudins… até que manhãs mais não havia. Elas se acabaram com sua partida. Agora os dias corriam pesados. Faltava o chinelo arrastando pela casa, faltava a chegada da feira com sacolas abarrotadas de frutas muito além do que a gente comia, a lambida na faca de geleia antes de encostar na pia. Faltava o tchau, filha! Foram embora também minha inspiração, meus bolos, minha alegria. Ficou o triste olhar com o qual se enxerga a falta de alguém que no meu mundo tão terreno e imediatista não mais existia.

Eu fui embora. Pra lá, pra cá, pra onde quer que eu achasse que aquela tristeza passaria. Mas ela fica, e te engole se você não a engolir primeiro. Ela leva sua inspiração, seus bolos, sua alegria. Mas as memórias, estas não têm quem as tire de você. E elas vivem no mesmo lugar: um abraço gostoso, uma tarde na praia, uma fruta tirada do pé de maneira muitíssimo clandestina. Elas são um coleção de quem você sempre foi, e ficam trancadas numa bonita caixinha. Muitas requerem uma chave para que de lá sejam retiradas, e o curioso é que talvez você só descubra que precisava dessa chave depois que der a primeira mordida. Minha chave foi uma fatia de bolo.

Alguns anos depois, empacotando livros para outra mudança, encontrei a receita numa folha de papel pautado, já amarelada pelo esquecimento, dentro do livro de receitas da Le Cordon Bleu, e no cantinho, em lápis: um bolo de chocolate realmente muito gostoso. A Julia não mentiu. Eu tinha anotado a receita com as adaptações de farinha já pensando no aniversário de 45 que nunca chegou. Mas agora eu estava certa de que um bolo de comemoração da sua vida tão bonita, mas mesmo que ele não mais estivesse aqui, jamais faltaria.

E bolo não traz na gente essa sensação? A de que a vida seja um constante celebração. Sejam eles cobertos, recheados, confeitados, ou simplificados, polvilhados em açúcar (do confeiteiro), e servidos em bonitos pedaços, quentes ou gelados. O bolo é casa. Atributo de alguém em misturar ingredientes diferentes em busca da conquista da massa perfeita – fofa, leve, bonita, que exiba dotes de um bom cozinheiro para quem faz e bom anfitrião para quem serve. Ele serve dos mais singelas “ah, só um bolinho”, às deslumbrantes festas Versaillais desde Maria Antonieta. O bolo representa momentos de nada e de tudo. Seja no aniversário, casamento, visita, ou chegada de um bebê ao mundo. O bolo é o que de mais esperado existe na ocasião risonha, no encontro, na mesa cheia. Como Julia uma vez disse: “Uma festa sem bolo é só uma reunião”.

Então, desdobrei a folha com cuidando, evitando forçar o rasgo no meio, e li suavemente, como quem lê uma carta de amor escrita na adolescência e se envergonha por um dia ter achado que sabia o que fazia. Dobrei a carta, guardei em outro livro, e fui à cozinha. Liguei o forno, untei, enfarinhei, separei, pesei, bati e assei. Comi, sozinha, pensando em como eu pude ter desistido de uma das coisas mais deliciosas da vida.

O bolo me levou de volta à cozinha, que agora era em Boston, longe de tudo que eu sabia, mas onde a própria Julia tinha imaginado ser um lugar para que eu pudesse preparar as saborosas lembranças da comida do meu pai e as aprimorar com o aprendizado de suas técnicas. Julia e seu bom amigo Jacques Pépin sonharam juntos o curso de Artes Culinárias da Universidade de Boston e desenvolveram classes que não só nos ensinariam a cozinhar como também sobre antropologia alimentar, história da alimentação, e uma paixão que ressonava no íntimo tanto da Julia quanto do Jacques (e agora da Jaíne!): a de contar histórias de comida.

Lá, a chef pâtissière que nos conduzia então ligava o forno, untava, enfarinhava, separava, pesava, batia e assava. Ao fim da aula comíamos todos juntos, regozijando o amargor, o rum, o chocolate magnânimo, suculento da cobertura que escorria. Eu lembrei da felicidade que aquele bolo costumeiramente trazia. E guardei, num lugar de prosperidade dentro de mim, o bolo da Julia de novo. Voltei para casa e escrevi, naquele dia, sobre o quanto a falta do meu pai ainda existia, e as palavras tristes saíram, dando espaço para a minha inspiração, para meus bolos, para a minha alegria.

De lá para cá, eu sigo no mundo da comida. Cozinho, como, e conto para as pessoas o que se pode tirar de mais bonito disso. É como se meu pai tivesse me deixado o imensuravelmente gentil presente que é saber compartilhar.

Outro dia, brilhando em puro contentamento por ter visto meu primeiro artigo publicado numa revista estadunidense (Cherry Bombe), vi a foto do meu pai, lá, sorrindo, me lembrando que a vida é feita das coisas que a gente ama, e que ela pode acabar muito cedo, mas enquanto existirem pessoas que compartilharam sabores com você, sua história existirá. Com os olhos ainda molhados pela felicidade da conquista, atei o avental azul enfeitado com Torres Eiffels e fui para a cozinha. Liguei o forno, untei, enfarinhei, separei, pesei, bati e assei. Comemos, eu, meu pai, e Julia—cada um em seu plano—, um bolo de chocolate realmente muito gostoso, e pensamos: as coisas bonitas (e os infindáveis bolos saborosos) que compartilhamos nessa jornada tem, por si só, uma própria e eterna vida.

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Gâteau Reine de Saba

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Untuoso, perfumado pelas amêndoas e levemente amargo pelo chocolate, o bolo preferido de Julia Child!
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