


Avocado numa hora dessas
Invocar o receituário de família é uma forma de trazer à mesa, num plano simbólico, as pessoas com quem não posso compartilhar o espaço físico.
por Constance Escobar
Já são oito semanas de confinamento em casa, dividindo espaço com hóspedes indesejados, que chegaram sem convite: medo, incerteza, angústia. Desde a primeira semana de quarentena, a cozinha é o recinto onde tenho me refugiado. É o útero da casa, como bem definia Rubem Alves, o lugar onde a vida cresce. Por necessidade, mas também por escolha, é o cômodo onde passo boa parte do tempo atualmente. Num momento em que o passado soa como uma quimera e o futuro é pura abstração, cozinhar é das poucas coisas que me mantêm no presente.
Meu fogão não tem sido morada de ingredientes impostores nem palco para receitas ousadas e desafiadoras. Banana e laranja remetem aos bolos da mãe. Pão, além de abraçar a manteiga, quando sobra, vai parar no pudim que a bisavó nos legou, o “Pudim de Pão da Vovó Augusta”. Cenoura é pretexto para fazer o bolo de liquidificador que a avó me ensinou ainda na pré-adolescência – a primeira vitória culinária da menina que ainda não ousava sonhar com chocolates de origem ou baunilha orgânica. Invocar esse receituário é uma forma de trazer à mesa, num plano simbólico, as pessoas com quem não posso compartilhar o espaço físico.
Mais do que nunca, tenho vislumbrado na comida a essencial conexão com a memória. Quando o desamparo é grande, a gente busca esteio na zona de conforto. Como se, através das receitas de família e dos sabores da infância, pudéssemos manter uma normalidade fluindo, uma sensação de permanência e continuidade enquanto, lá fora, tudo é ruptura.
Portanto, não me venham com avocado. Numa hora dessas, abacate é abacate mesmo. E, ao menos aqui em casa, não vai ser desperdiçado na torrada de sourdough, coroado com flor de sal. Vai mergulhar no creme aveludado com que a mãe desde sempre adoça nossas vidas.
PARA MERGULHAR NA COZINHA


Mini bolinho de laranja
PARA MERGULHAR NA LEITURA!

Pra não dizer que não falei das flores
